Maria Flor

Atriz, autora do livro 'Já não me sinto só'

Opinião

Expatriada, até quando?

Estou no exílio do meu próprio lar, fechada nos cômodos desta casa que não é minha, neste país que desconheço, com um povo que não reconheço

(Foto: Divulgação)
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Outro dia acordei com este verso na cabeça: “A minha pátria é como se não fosse, é íntima”. É do poema Pátria Minha, de Vinicius de Moraes: achei estranho que um poema que eu não lia há tanto tempo surgisse na minha memória assim, de supetão.
Na adolescência, eu recitei este poema no sarau da escola e essa era uma lembrança boa, de uma vida doce, inocente. Ao mesmo tempo, parecia uma premonição ruim, dado o fato de Vinicius ter escrito esse poema no exílio, em decorrência da ditadura, e de a nossa jovem democracia estar sendo tão ameaçada ultimamente. Corri até o computador para relembrar o poema inteiro. Ele é muito atual.

A minha pátria é como se não fosse,é íntima.
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.

Diante do poema na tela no computador eu também chorei. Chorei de saudades da minha pátria. Não uma saudade como a de Vinicius, que estava fisicamente longe desta terra. Chorei de saudade daquilo que poderíamos ser como pátria, nação, país. Chorei pela distância enorme que se coloca entre todos nós, brasileiros, neste momento. Uma distância ética, ideológica, lógica.
Estou no exílio do meu próprio lar, fechada nos cômodos desta casa que não é minha, neste país que desconheço, com um povo que não reconheço. Espero meu primeiro filho e o medo da vida no Brasil se intensificou nos últimos meses.

 

Vejo as pessoas sendo vacinadas e os casos de infecção de Covid-19 cederem lentamente, e isso traz uma leve sensação de que as coisas vão melhorar, mas vejo um país arrasado. Vejo um governo incapaz, omisso, que não comprou vacinas a tempo de salvar vidas. Um governo que fez trambiques em compras de vacina para desviar verbas que poderiam salvar tantos brasileiros. Observo as pessoas se deslocarem nas ruas, quase mecanicamente, em direção aos seus trabalhos, ao transporte público, às suas vidas cotidianas. Percebo pouco orgulho em seus olhos.

Muitos pedem dinheiro nas esquinas: crianças, mães com seus bebês, homens embaixo das marquises. Sempre foi assim, mas é visível o número crescente de pessoas em desespero por um prato de comida. E é impressionante como os demais moradores não as enxerguem, ignoram a falta de dignidade com que outros seres humanos vivem no Brasil.
Em outro trecho do poema, Vinicius de Moraes segue:

Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos…
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha!

Tenho vontade mesmo de pegar o nosso país pelas mãos, colocá-lo no colo e dizer: vai ficar tudo bem, como um filho perdido que não sabe que caminho escolher e temos de ajudá-lo, dar-lhe as ferramentas. Tenho vontade de recomeçar por algum lugar, que eu ainda não sei qual é, retomar uma esperança perdida por nós no momento que deixamos a eleição de 2018 tomar o rumo que tomou.
O poema é tão atual que até as cores da nossa bandeira estão lá: “Tão feias”, diz o poeta. E realmente o são, e parece que as tornaram ainda mais feias agora. A representação de um país reacionário, preconceituoso e mesquinho. Perdemos a nossa bandeira, ela não nos representa mais.

Fico pensando em como sair deste labirinto perverso e traumático em que nos ­encontramos e me pego tentando admirar as coisas simples da vida: os dias de inverno do Rio de Janeiro, o céu azul que só aparece nesta época do ano e o mar do Arpoador. Há vida lá fora, e aqui dentro ela pulsa em 165 batimentos por minuto. Existe esperança, tem de existir.
Vinícius escreve no final do poema:

Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamen
Que um dia traduzi em um exame escrito:
“Libertas que serás também”
E repito!

E repito para você, que como eu anda perdido neste mar de angústia, medo e incerteza: “Libertas que serás também”. Vamos conseguir nos libertar deste governo, deste mal que nos confundiu e nos separou. E se libertarmos uns aos outros da dor e do medo, também o seremos.

Publicado na edição nº 1166 de CartaCapital, em 15 de julho de 2021.

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