Opinião

EUA de Biden sinalizam retomada da boa vizinhança com a América Latina

‘O discurso dedicado à política externa representa uma virada política. Com uma só palavra, diplomacia’, escreve José Sócrates

O presidente Joe Biden e a primeira-dama Jill Biden. Foto: Mandel Ngan/AFP
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Joe Biden: “A minha mensagem para o mundo hoje é que os EUA estão de volta, a diplomacia está de volta. Ela é o centro da nossa política externa”. Mensagem recebida. Diplomacia quer dizer diálogo por contraste com imposição unilateral. Diplomacia quer dizer negociação e não uso da força. Diplomacia significa a procura de soluções políticas em detrimento de soluções militares.

Desde a Guerra do Iraque que não ouvíamos nada assim. Diplomacia. O resgate dessa palavra para o discurso político representa o regresso dos Estados Unidos ao mundo. Ao mundo do direito internacional, ao mundo da Carta das Nações Unidas, ao mundo do princípio da resolução pacífica dos conflitos.

Os habituais cínicos da política internacional que gostam de citar os estafados clichês sobre amigos, inimigos e interesses perpétuos das nações apostaram repetidamente que nada mudaria na política externa norte-americana depois das eleições. Enganaram-se. 

O discurso de Biden dedicado à política externa representa uma virada política. Com uma só palavra, diplomacia. 

A batalha vai ser longa e dura. Trata-se de recuperar o prestígio perdido na ordem mundial. O regresso ao acordo de Paris sobre as alterações climáticas, à Organização Mundial da Saúde e à Comissão de Direitos Humanos da ONU e a retirada do apoio militar à Arábia Saudita na guerra do Iêmen são decisões que expressam a consciência da urgência. Não há tempo a perder. Dizem alguns que, quanto à China e à Rússia, tudo ficou igual. Não creio. Primeiro, ficou claro no discurso que as disputas geopolíticas serão encaradas como desafios diplomáticos e não como oportunidades para exercitar qualquer tipo de fanfarronice militar ou de maniqueísmo moral – nós os bons, eles os maus. Segundo, os valores que conduzirão a política externa foram apresentados com clareza e representam o retorno ao melhor da tradição iluminista – direitos humanos, dignidade humana, Estado de Direito, democracia. A firme condenação do golpe de Estado em Mianmar (que, aliás, contrasta com a indecente posição do governo brasileiro) mostra que a mudança é para se levar a sério. O mundo mudou e mudou para melhor. 

No que diz respeito à América Latina, uma única medida, mas altamente simbólica. O Departamento do Tesouro emitiu uma licença que flexibilizou as sanções impostas à Venezuela em 2019 e que permite agora transações comerciais por via marítima e aérea com aquele país. Alguns dirão que nada mudou. Talvez, mas também é certo que todas as mudanças começam assim, com pequenos passos.

A América Latina, no meu ponto de vista, é uma das áreas da geopolítica onde se esperam mudanças significativas. Bem sei que essa é uma parte do mundo onde os Estados Unidos exercitaram o pior da sua força imperial. A minha geração cresceu politicamente testemunhando a violência e a brutalidade da intervenção norte-americana na guerra suja de El Salvador, na ditadura militar no Brasil, na Argentina e no Chile. A chamada Longa Paz da Guerra Fria foi um desastre para os regimes democráticos no Centro e no Sul do continente americano. E, no entanto, antes disso, houve um pequeno período em que a política dos EUA foi diferente.

Em 1933, o presidente Roosevelt, depois de tomar posse, retirou tropas das Caraíbas, revogou a Emenda Platt da Constituição cubana, que conferia aos Estados Unidos o direito de intervirem na política daquele país, e decretou um absoluto princípio de não intervenção militar nas decisões soberanas das restantes nações da América Latina. Dirigindo-se à União Pan-Americana diria: “O vosso americanismo e o meu devem constituir uma estrutura construída na base da confiança, cimentada na simpatia que reconhece somente igualdade e fraternidade”. Esse foi o mais longo período de paz, cooperação e desenvolvimento econômico, que durou até 1947. Essa política ficou para a história como a “política de boa vizinhança”, que, no dizer de um historiador que aprecio, salvou os Estados Unidos de si próprios. Infelizmente, o que se passou a seguir deixou no esquecimento esse período. 

Não tenho ilusões. Um país com a força militar dos EUA vai continuar a ser um império. Talvez nem sequer esteja nas suas mãos escolher não o ser. Mas justamente por isso vai precisar de uma política abrangente para a América Latina. Nessa política haverá duas coisas que tenho por certo. Primeiro, ela não será construída com base em alianças com quem esteve ao lado daqueles que ameaçaram a sua própria democracia, e esse é, infelizmente, o caso do atual governo brasileiro. Desculpem, mas não resisto: não haverá mais “presentes da CIA”. Em segundo lugar, para construir essa nova política, não precisarão de outra coisa que não seja procurar inspiração no melhor da sua história. 

Publicado na edição n.º 1144 de CartaCapital, em 12 de fevereiro de 2021.

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