Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Estou me guardando para quando a pandemia passar

Queria acordar, ligar a TV e nunca mais ouvir as palavras presencial, AstraZeneca, primeira dose, Coronavac, curva de mortos, Pfizer, UTI

Cena de domingo na Avenida Paulista
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Ando sonhando com o dia em que, depois de rodar a vinheta, o apresentador do telejornal das oito e meia vai dizer, como disse Tom Zé em seu primeiro disco de 1968: Não se morre mais, cambada!

Aí, eu vou retirar a máscara, respirar fundo, vestir uma camisa listrada e, se alguém perguntar por mim, diz que fui por aí.

Vou atravessar a rua, correr até o ponto de ônibus, fazer sinal pro motorista do Paraíso e seguir até a Avenida Paulista, onde quero parar de banca em banca, bancas que ainda vendem jornais e revistas.

Quero fotografar as pessoas lendo dentro do coletivo, perguntar se estão gostando do livro, saudade disso.

Quero comprar a Piauí, a Quatro Cinco Um e a New Yorker, se é que as bancas da Paulista ainda vendem revistas gringas.

Ah, eu quero comer uma língua à milanesa com purê de batatas no Le Jazz, fotografar o reflexo do sol nos arranha-céus, passar na Travessa pra saber se já chegou o livro com todas as letras de Paul McCartney e quanto custa Todos os Contos, de Júlio Cortázar.

Quero tomar um cafezinho na Cristallo do Shopping Higienópolis, pegar o primeiro avião com destino à cidade maravilhosa, ver o mar do Leblon, o pôr do Sol no Arpoador, atravessar com medo a Linha Vermelha.

Quero ir a Belo Horizonte, a minha BH, ver o Raul falando, dando sua opinião sobre tudo, me explicando o nome de cada trenzinho da sua coleção.

Quero comer uma fatia de abacaxi pérola no Mercado Central, comprar queijo da Canastra, uma lata de bananada da Dona Zélia, um pacote de balas Chita, beber um Mate-Couro gelado.

Voltando pra São Paulo, quero ir na Praça John Lennon ver se o abacateiro que lá plantei sobreviveu a esse tempo todo sem chuvas, sem temporais.

Quero doar algumas cestas básicas na Brasilândia, em Paraisópolis, Jardim Ângela, não importa. Promessa de pandemia.

Quero sujar o meu All Star branco na poeira fina da periferia, ouvir a voz anunciando em inglês que chegamos na Consolação Station na linha amarela do metrô.

Quero passear pela Feirinha da Benedito, procurar entre mil vinis, o Fa-Tal da Gal, o Isca de Polícia do Itamar, o Expresso 2222 do Gil, o Cidade Oculta do Arrigo Barnabé.

Quero sentir o cheiro das flores na Doutor Arnaldo, fuçar os sebos de Pinheiros, quem sabe achar os poemas de Julian Beck e Judith Melina?

Quero ir no SuperVille pra saber se chegou a San Pelegrino de laranja, a Fanta Pêssego, a Coca-Cola Spicy pra drinque, vinda da Bulgária.

Quero ir na casa dos amigos, rever os afilhados, comer aquele frango fricassé de Dona Elide, aquele pão com linguiça do AC, aquele tzatzike da Olga Vlahou.

Quero ir longe. Colher figos em Vryses, no Peloponeso, saborear uma bisteca fiorentina no mercado de Florença, rever Paris, comprar ovos de pata no Whole Foods de Londres.

Queria acordar, ligar a TV e nunca mais ouvir as palavras presencial, AstraZeneca, primeira dose, Coronavac, curva de mortos, Pfizer, UTI, Janssen, Flexibilização, Sputnik, máscaras.

Que bom seria nunca mais ouvir nomes como Jair Bolsonaro, Eduardo Pazuello, Onyx Lorenzoni, Paulo Guedes, coisas assim.

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