Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

“Estudantes devem ser tratados como pessoas. Estamos fazendo isso?”

Tratar como pessoa é reconhecer, é valorizar. É entender que temos indivíduos com os mais diferentes pontos de partida e de chegada

Créditos: Divulgação
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Tenho boa memória. Sou capaz de narrar com riqueza de detalhes fatos que ocorreram na minha primeira infância. E é exatamente isso que farei agora.

1989. Havia pouco tempo que eu tinha ingressado na escola. Estava feliz, animada. Tudo era novidade: o uniforme vermelho, o tênis da mesma cor, a mochila nova que eu dividia com a Miriam, minha irmã. As aulas dela eram pela manhã. Quando chegava em casa, ela tirava os livros e os cadernos para que eu pudesse levar os meus à tarde. Os lápis, a borracha, o estojo também eram divididos com ela.

Ao final das aulas, voltava para casa entusiasmada com os elogios da Roseane, minha professora. Gostava tanto de estudar que ficava feliz até com os deveres de casa, que aqui em Minas costumamos chamar de “para-casa”. Aos cinco anos, eu conseguia fazê-los sozinha, sem precisar da ajuda de ninguém. Mas um dia não consegui e pedi ajuda a minha mãe. Ela estava se aprontando para o trabalho.

Minha mãe olhou para a atividade e não disse nada. Terminou de se arrumar. Enquanto isso, continuei tentando resolver os exercícios que naquele momento eram tão difíceis para mim. Depois de muito tentar, percebi que minha mãe tinha saído. Corri até a porta. Ela já estava no quintal. Então, implorei:

– Mãe, por favor, fica! Me ensina o para-casa!
– Eu não posso, Luana…Eu não sei… – Ela disse.

Foi a primeira vez que vi minha mãe chorar. Ela não podia ficar porque precisava trabalhar. Não podia me ensinar porque não sabia ler.

Não insisti. Aos prantos, eu a vi ir para o trabalho. Voltei para a minha tarefa. Era tanta lágrima que a folha rasgou. O pranto deu lugar ao desespero.

Ao chegar na escola, mais choro. Para explicar o motivo de eu não ter feito o para-casa. Para explicar a folha rasgada. Justo eu que sempre tinha as atividades prontas, que sempre fui uma boa aluna.

 

Para a minha surpresa, fui abraçada pela Roseane, que pediu que eu me acalmasse. Ela foi até o mimeógrafo e fez uma cópia do para-casa. Em seguida, me ensinou como resolver os exercícios que até então pareciam impossíveis. Ela disse ainda que quando eu não soubesse, poderia chegar na escola um pouco mais cedo para que ela pudesse me ensinar. Fiquei agradecida, aliviada.

Ser acolhida pela minha professora fez toda diferença. Interessada em nossas vidas, Roseane sabia o que se passava conosco. Sabia das ausências da minha mãe e do meu pai em razão do trabalho. Sabia que a minha avó, que ficava comigo e com os meus irmãos, não podia me ajudar nos estudos, pois também não sabia ler. Certa vez, um colega deixou de frequentar a escola. Ela tomou uma série de medidas para que ele retornasse. Quando ele voltou, fizemos uma festa para recebê-lo.

Lembrando da Roseane agora, vejo que ela carregava em sua prática pedagógica, no seu modo de agir, alguns elementos apresentados por bell hooks no livro “Ensinando a transgredir: educação como prática da liberdade”. Segundo a educadora afro-americana, enquanto professores, precisamos caminhar em direção a uma “pedagogia engajada”, que respeite e valorize a trajetória de cada estudante. Uma pedagogia que não se ocupe somente com os resultados, com os saberes presentes nos livros, mas que se aproxime do que cada estudante carrega no seu íntimo. Uma pedagogia emancipadora, capaz de aliar coração, mente e intelecto. bell hooks nos diz: “Precisamos ensinar de um jeito que proteja a alma das nossas crianças”. Foi exatamente o que a Roseane fez.

Mas nem sempre é isso que acontece nas escolas. Muitas vezes, nós professores esquecemos que os estudantes com os quais convivemos diariamente são seres únicos, cujas vidas são marcadas por inúmeras travessias, muitas delas carregadas por dores e dificuldades. Muitos são os que não fazem os trabalhos escolares por não ter quem os ensine. Muitos são os que abandonam as salas de aula por não enxergar qualquer sentido nelas. Muitos são os que não conseguem prestar atenção nas aulas em função de abusos e da violência doméstica. Muitos são os que vão para escola sem uniforme por não ter água encanada em casa para lavar. Muitos são os que vão à escola para comer, pois é nela que encontram alimento.

Em minha caminhada como professora da Educação Básica, por inúmeras vezes, vi esses percursos serem ofuscados, silenciados por nossa urgência de atingir metas, cumprir conteúdos, aplicar avaliações. Quase sempre, enxergamos as crianças, os jovens e os adultos unicamente como indivíduos que ao final do ano letivo precisam alcançar pontos e conceitos para serem aprovados, o que têm produzido inúmeros processos de exclusão e a manutenção das desigualdades, sobretudo, de gênero e raça.

Ao fazer essas observações, não pretendo impor a mim e aos meus colegas de jornada a condição de psicólogos ou assistentes sociais. Longe disso. Inclusive, penso que em tempos de retirada de direitos, de perseguição e de desqualificação institucionalizada do fazer docente, precisamos exigir respeito ao que realmente somos: educadores. Acontece que a escuta atenta, o diálogo, o afeto, o respeito à individualidade de cada educando são fundamentais para termos êxito no processo educativo. Sem essa consciência, dificilmente iremos avançar.

Pensando nessas questões, lembrei-me da Grazielle, que foi minha aluna no curso de Pedagogia. A partir do pensamento de bell hooks, em uma de nossas aulas, discutimos justamente a maneira como pensamos o ato de educar, a sala de aula, o modo como vemos nossos alunos e alunas. Entendemos que muita coisa precisa ser mudada para que o direito humano à educação seja cumprido de fato. Grazielle apresentou uma das assertivas mais bonitas que já ouvi em toda minha vida: “Precisamos tratar os alunos como pessoas”.

Desde então, em todo canto em que vou, em cada sala de aula que entro, faço das palavras da Grazielle minhas também. Pergunto: estamos tratando os estudantes como alunos ou como pessoas? Quase sempre a pergunta é acompanhada por um profundo silêncio. E o silêncio diz muito, justamente porque há uma diferença imensa entre tratar como aluno e como pessoa.

Tratar como pessoa é reconhecer, é enxergar, é valorizar. É entender que na sala de aula temos indivíduos com os mais diferentes pontos de partida e de chegada. É compreender que a escola não é uma caixa, não é uma forma em que todos e todas são iguais. É celebrar as diferenças.

Quando seguimos o exemplo da Roseane e tratamos os estudantes como pessoas, humanizamos nossa prática docente, tornando a sala de aula um espaço fértil para realizações e aprendizados. Ao humanizarmos a nossa prática docente, humanizamos a nós mesmos.

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