Luiz Gonzaga Belluzzo

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Economista e professor, consultor editorial de CartaCapital.

Opinião

Estados Unidos sempre na defesa da democracia e das liberdades

‘É bom abrir o olho. Quando essa turma e seus institutos falam em liberdade, devemos levantar os braços como o fazem os que estão sob a mira de uma garrucha’

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Ouvindo o discurso de Joe Biden em defesa da Otan, da democracia e das liberdades, lembrei-me de revelações tardias sobre a participação de Tio Sam no Golpe de Estado que assolou o Brasil nos idos de 1964. Gostaria de advertir os leitores de CartaCapital que não se trata de uma tentativa de defender a guerra de Putin na Ucrânia. Trata-se apenas de, entre dúvidas e reconsiderações, cuidar dos transtornos que se repetem e se reproduzem na geopolítica da era atual e naquela dos tempos idos e vividos.

A imprensa brasileira noticiou em uma terça-feira, 7 de janeiro de 2014, a “descoberta” de uma gravação reveladora. O próprio Kennedy gravou a conversa com o embaixador americano no Brasil. Kennedy perguntou a Lincoln Gordon se os Estados Unidos poderiam “intervir militarmente” no Brasil para depor o presidente João Goulart. Os jornais proclamaram que “a revelação feita pelo jornalista Elio Gaspari muda o entendimento da participação americana”. Às vésperas do famigerado golpe de Estado de 1964, surgiu um slogan premonitório: “Basta de intermediários, Lincoln Gordon para presidente”. Gordon era o embaixador dos Estados Unidos no Brasil.

Em seu livro A Segunda Chance do Brasil – subtítulo, A Caminho do Primeiro Mundo – publicado em 2002, Gordon relata uma reunião na Casa Branca com o presidente Kennedy: “Durante a reunião na Casa Branca, eu alertei o presidente Kennedy sobre a possibilidade de algum tipo de ação pelos militares brasileiros e ele perguntou qual deveria ser nossa atitude”. Depois de tergiversar, enrolar com considerações a respeito da admiração de Goulart pelo presidente americano, Gordon foi ao que interessava e concluiu: “O mais importante é ao mesmo tempo organizar as forças tanto políticas quanto militares para reduzir o poder de Goulart […] ou, em uma situação extrema, destituí-lo, se as coisas chegarem a esse ponto, o que dependeria de uma ação explícita de sua parte”.

Richard Naradof Goodwin era, na ocasião, subsecretário de Estado para Assuntos Interamericanos. Minutos depois da fala de Gordon, Goodwin observou: ‘Podemos muito bem querer que eles (militares brasileiros) assumam o poder no fim do ano, se eles puderem fazer isso”.

Na nota de rodapé da página 325 da primeira edição do livro publicado pela Editora Senac, o embaixador Gordon escreve: “Para minha surpresa revelou-se recentemente que o presidente Kennedy tinha instalado um aparelho de gravação no Salão Oval. Nessa conversa de 30 de julho, que incluiu também Richard Goodwin, foi a primeira reunião a ser gravada. A transcrição tem muitos hiatos (sic), alguns por razões de segurança, outros porque certas passagens não puderam ser decifradas. A maior parte desse material está disponível agora nas páginas 9 a 25 de Timothy Naftali (org.) The Presidential Records, John F. Kennedy, The Great Crisis, vol. 1, 2001.”

Gordon conspirava abertamente com as “forças democráticas” nativas, aquelas que estão permanentemente arquitetando a supressão da democracia. Da conspirata participavam naturalmente os homens de bem: ricos de todos os gêneros, parte da classe média ilustrada, semi-ilustrada e deslustrada. Até mesmo os habitantes de outras galáxias sabiam que senhores da mídia tupiniquim estavam metidos até a raiz dos cabelos nas conversações e maquinações conspiratórias articuladas por Gordon. É surpreendente que manifestem surpresa com as palavras de Kennedy registradas na gravação. Mas, como sugere Woody Allen em um de seus filmes, “tudo pode acontecer”.

Segue o enterro: a situação política, continua Gordon, “me levou a endossar a sugestão da CIA de que fornecesse dinheiro a candidatos amigáveis”. Para tanto, a agência americana de espionagem e informação valeu-se do Ibad, o Instituto Brasileiro de Ação Democrática, criado em 1959 por um certo Ivan Hasslocher com o propósito de combater o governo Juscelino, que, sabem todos, era um perigoso aliado do comunismo internacional.

Os Estados Unidos já haviam patrocinado a deposição de Arbenz na Guatemala e instigaram a queda de Perón na Argentina. O suicídio de Getúlio, em 1954, e a coragem do então general Henrique Batista Duffles Teixeira Lott, ministro da Guerra, em 11 de novembro de 1955, abortaram as tentativas de interrupção da normalidade institucional no Brasil. Mas, em março de 1964, o País entrou finalmente no roteiro dos “golpes democráticos” gestados em Washington.

O resto da história os brasileiros maiores de 50 anos sabem: duas décadas de ditadura militar, cevada e sustentada pelo Departamento de Estado. Está mais do que provado há tempos que a participação da CIA e de outras agências americanas no golpe foi decisiva. Os americanos foram generosos na transferência de tecnologia: enviaram experts nas técnicas de tortura, conforme depoimento insuspeito e digno de muitos oficiais brasileiros que se recusaram a compactuar com os desatinos do regime autoritário.

É bom abrir o olho. Quando essa turma e seus institutos falam em liberdade, devemos levantar os braços como o fazem os que estão sob a mira de uma garrucha. Gordon gostava de fumar cachimbo. Dizem que, já morto, ainda tem a boca torta.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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