Cristina Serra

Paraense, jornalista e escritora. Autora, entre outros, de 'Tragédia em Mariana: a História do Maior Desastre Ambiental do Brasil' (Ed. Record)

Opinião

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“Estado de golpe”

Associado a Trump, Bolsonaro mantém a conspiração viva. A versão atualizada da Operação Brother Sam tenta subjugar o Brasil por meio de chantagem econômica

“Estado de golpe”
“Estado de golpe”
Cartaz com a foto do presidente Donald Trump e do ex-presidente Jair Bolsonaro em protesto na Avenida Paulista, em 10 de julho de 2025. Paulo Pinto/Agência Brasil
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Bolsonaro fracassou na tentativa de dar um golpe de Estado, em 8 de janeiro de 2023, mas consegue manter um permanente “estado de golpe” no País. O ex-presidente, hoje inelegível, retém considerável capital político-eleitoral, apesar do processo a que responde no Supremo Tribunal Federal pela ação criminosa contra o Estado Democrático de Direito que previa, inclusive, um desfecho sangrento no feitio das quarteladas de republiqueta.

Conforme o “pensamento digitalizado” de um de seus comparsas, o golpe seria consumado com o assassinato do presidente Lula, do vice, Geraldo Alckmin, e do ministro do STF Alexandre de Moraes. Nada disso constrange a malta fanatizada que continua a atender manifestações de apoio a Bolsonaro Brasil afora. E incomoda menos ainda seus aliados no Congresso, no mundo empresarial, na mídia e os governadores dos estados mais importantes do País, todos solidários a ele e contrários à sua prisão domiciliar, determinada por Moraes, em vista das constantes violações de medidas cautelares pelo réu.

A volta de Trump ao poder nos Estados Unidos fermenta as instabilidades aqui dentro, que serão potencializadas em 2026. A extrema-direita brasileira e sua contraparte norte-americana estão associadas num processo simbiótico de forma, conteúdo e métodos de ação. Aqui, o ­modus operandi miliciano. Lá, Trump aplica o manual das máfias. Para usar uma expressão de Alexandre de Moraes, são gente da mesma “laia” na coordenação do ataque mais hostil dos EUA ao Brasil desde 1964.

Diferentemente do passado, não é preciso mandar porta-aviões para o litoral brasileiro. A versão atualizada da Operação Brother Sam tenta subjugar o Brasil por meio de chantagem econômica. O tarifaço é vinculado à extinção do processo contra Bolsonaro no STF, o que significaria devolvê-lo ao jogo eleitoral no ano que vem. E Trump tenta quebrar a espinha de Alexandre de Moraes com sanções pesadas e as ameaças de estendê-las para parentes e outros ministros da Suprema Corte.

O pano de fundo dos delírios tirânicos de Trump é a manutenção da ordem mundial tal como definida após a Segunda Guerra Mundial. Os EUA não toleram a ascensão de países que desafiem a sua hegemonia. No que concerne ao Brasil, o que Trump quer é um sabujo que abra caminho para a rapinagem das nossas riquezas minerais, decisivas para a expansão do capitalismo digital. A pilhagem seria coordenada com a falta de qualquer controle ou regulação sobre as big techs, para que os oligarcas do Vale do Silício continuem acumulando montanhas de dinheiro com suas máquinas de produção de ódio e extremismo.

Os norte-americanos sempre jogaram pesado no trato com outros países. Na diplomacia, na espionagem e nas guerras. A diferença de Trump para presidentes que o precederam, inclusive democratas, é que com ele a truculência é explícita, sem meias-palavras. É longa a lista de “mudanças de regime” patrocinadas pelos EUA em países que contrariaram seus interesses estratégicos. Os métodos utilizados são os mais diversos. Ações clandestinas da CIA, ajuda a grupos dissidentes, manipulação de eleições, assassinato de líderes políticos. Estamos falando, portanto, de profissionais do ramo. Bolsonaro e sua “rataria” são os parceiros talhados para as agressões de Trump contra a democracia brasileira e a nossa soberania.

O governo Lula tem reagido com altivez e serenidade às tentativas de extorsão tarifária, buscando negociar pelos canais institucionais e reforçar o multilateralismo, que pode até parecer moribundo diante das tormentas globais, mas ainda é o melhor caminho para manter alguma racionalidade e dignidade nas relações entre nações soberanas. Por seu turno, Moraes tem se mostrado disposto a enfrentar o custo pessoal que recai sobre seus ombros pela condução da ação penal mais importante do STF nos últimos anos.

A condenação e a prisão de Bolsonaro serão um salto civilizatório para o Brasil. Terão também o gosto de um acerto de contas por outros crimes cometidos por ele e não julgados. Não posso deixar de pensar nos 700 mil mortos pela pandemia, quando fomos assolados pela infelicidade de ter na Presidência da República uma figura tão aberrante como Bolsonaro, capaz de zombar dos que morreram por falta de oxigênio nos hospitais de Manaus. Reafirmo o que escrevi naqueles dias terríveis. Nós, que sobrevivemos ao vírus do ódio, temos o dever da verdade, da memória e da justiça. •

Publicado na edição n° 1374 de CartaCapital, em 13 de agosto de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘“Estado de golpe”’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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