Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

“Esse é o meu maior sonho, ser advogada para tirar o meu pai da cadeia”

Luana Tolentino reflete sobre uma escola ‘que coincida com a vida real, que ensine sobre cidadania e o mundo que nos cerca’

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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Em um mundo cada vez mais digital, ainda cultivo o hábito de guardar papéis. Não se trata de qualquer tipo de papel. Guardo cartas, bilhetes e atividades dos estudantes com quem tenho convivido desde a última última década como se fossem verdadeiros tesouros.

Aproveitei os dias chuvosos para me alimentar das recordações dos meus alunos e alunas. Encontrei o bilhete do Samuel, que escreveu: “Nunca deixe de lutar!”. Encontrei os dizeres da Ana: “Professora Luana, eu gosto muito do seu jeito feminista”. Fiquei comovida com as palavras da Alessandra, que foi minha aluna na EJA: “Que Deus continue protegendo e abençoando a sua vida”. Me emocionei como na primeira vez que li o texto escrito pelo Lucas: “Queria te pedir perdão por todas as outras atitudes escrotas que eu tive com você, que no fundo representavam um preconceito velado!”.

Dentro do meu “cofre”, encontrei também uma atividade feita pela Larissa, que na época, tinha 12 anos. Ao ser perguntada sobre os seus sonhos, ela respondeu:

“O meu maior desejo é virar uma advogada. Desde pequena, quando o meu pai foi preso, eu sonho com isso. Quando o meu pai saiu, eu fiquei muito feliz, mas ele só ficou dois anos na rua. Então esse é o meu maior sonho, ser advogada para tirar o meu pai da cadeia. Sei que vou ter que estudar muito, mas tenho certeza que vou conseguir.”

Quando me deparo com sonhos como o da Larissa, encontro argumentos contundentes para rebater o discurso da meritocracia. Não há justiça quando a maioria precisa enfrentar toda ordem de dificuldades para galgar melhores condições de vida, ao passo que uma minoria detém todas as oportunidades. Além de perverso, uma vez que deposita nas classes pobres a culpa pela precarização de suas vidas, tal discurso tem servido para justificar a negação de direitos e também para criminalizar a pobreza e a miséria. Trabalho para que essa visão deturpada da realidade não contamine meus alunos. Insurjo cada vez que a falácia da meritocracia aparece nas reuniões pedagógicas e nos cursos de formação de professores que tenho ministrado.

Quando propus o exercício feito pela Larissa, tinha como objetivo trazer para a sala de aula um dos elementos primordiais da existência humana: o ato de sonhar. Além disso, enxerguei nele uma oportunidade de estabelecer uma relação pautada na escuta e no re-conhecimento de cada ser presente em minha turma. A partir da leitura das respostas, pude apontar caminhos e mostrar que, apesar das adversidades, sonhar é um direito. Lembro das palavras do Marcelo, meu ex-aluno: “A pobreza não pode tirar da gente o direito de sonhar”.

 

Sou mulher, negra, filha da classe trabalhadora e “tenho em mim todos os sonhos do mundo”. A soma desses fatores redundam na professora que consigo ser. Com os estudantes não é diferente. Ainda que muitos digam que “eles não querem nada”, todos carregam sonhos, vivências e desafios, que em muitas ocasiões, conforme elucidam as palavras da Larissa, se apresentam de maneira muito dura, já nos primeiros anos de vida.

Quando falo dos meus sonhos e interrogo meus alunos a respeito do deles, crio caminhos para o estabelecimento de um ambiente alicerçado por relações mais harmônicas e afetuosas. Conforme escrevi em outra oportunidade, desenvolvo estratégias para a humanização da prática docente. Abro espaço para a importância do saber, da educação como ferramenta importante para realização dos sonhos. No meu entendimento, tudo isso favorece o êxito escolar.

Entendo que os anseios, as memórias e as travessias realizadas pelos educandos e educandas têm tanta relevância quanto as avaliações internas e externas, a frequência escolar, as notas. Tais percursos devem conversar, estar intrinsecamente ligados às matrizes curriculares. Sem isso, a escola perde o sentido, deixa de cumprir sua função social, tornando-se um espaço desinteressante, tanto para quem aprende, quanto para quem ensina.

Essas prerrogativas ganharam ainda mais força na minha atuação profissional, na minha luta em defesa da educação pública e do protagonismo dos estudantes nos processos educativos após a leitura do livro “Currículo: território em disputa”, do educador Miguel Arroyo. Professor Emérito da Faculdade de Educação da UFMG (FaE/UFMG), Arroyo nos diz que:

“Quando as infâncias-adolescências com que trabalhamos põem de manifesto sua condição tão precarizada não dá mais para preparar a aula, ou passar a matéria sem nos indagar acerca de suas vivências, traumas, medos, que levam como gente, não só escolares. O que as turmas trazem para a sala de aula, como vivem e se socializam, pensam o mundo, se pensam, condiciona o que pensam e aprendem, aceitam ou rejeitam nossas lições. Chegar à escola, às salas de aula, aos processos de ensino-aprendizagem atolados no caos social, marca inevitavelmente o aprender ou rejeitar as interpretações do real que como ensinantes lhes passamos. Marca nossa docência”.

Nesse sentido, ressignificar os currículos de modo que haja espaço para o sonho, para o encanto, para as descobertas, para as asperezas do cotidiano, para as lutas em defesa da democracia e de condições dignas de trabalho para os professores, para as minorias ainda silenciadas, permanece sendo um dos nossos maiores desafios, principalmente num momento em que somos pressionados diariamente a seguir cartilhas prontas e ministrar somente os conteúdos que estão presentes nos livros didáticos.

Em meio a esse desafio, meninos, meninas, jovens e adultos anseiam por uma escola que “coincida com a vida real”, que não dê espaço para a indiferença, que ao ensinar Português, Matemática, Geografia, História e as demais disciplinas, ensine também sobre cidadania, sobre o mundo que nos rodeia.

Cinco anos se passaram desde a última vez em que vi a Larissa. No final de 2015, ela se mudou com a família para outro bairro. Em razão da distância, não pôde continuar na nossa escola. Caso não tenha havido nenhuma interrupção em sua trajetória escolar, pelas minhas contas, ela deve estar matriculada no 3º ano do Ensino Médio. Se ser advogada ainda for o seu maior sonho, talvez ela faça o Enem no final do ano. Torço para que ela seja aprovada e encontre uma universidade pública com as portas abertas e cheia de possibilidades. Torço ainda para que a materialização de seu sonho não tenha como único objetivo tirar o pai da cadeia.

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