Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Escolhi ser professora. Tenho muito orgulho disso

Afirmar o orgulho que sinto da minha profissão são formas de exigir a valorização docente, de resistir às tentativas de desqualificação

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Uma entrevista do ministro da Educação, Milton Ribeiro, concedida ao jornal O Estado de S.Paulo na semana passada, ainda repercute em razão do teor polêmico de suas declarações. Segundo o responsável pelo MEC, o retorno às aulas e as desigualdades educacionais, agravadas pela pandemia, não são de responsabilidade do órgão federal. Sobre a política de ampliação do acesso ao ensino superior, Ribeiro declarou que se trata de um equívoco.

Ao perguntar sobre a importância de se discutir questões de gênero no espaço escolar, a repórter Jussara Soares ouviu o seguinte: “Acho que o adolescente que muitas vezes opta por andar no caminho do homossexualismo (sic) tem um contexto familiar muito próximo, basta fazer uma pesquisa. São famílias desajustadas, algumas. Falta atenção do pai, falta atenção da mãe”. O senador Fabiano Contarato (Rede-ES) e o deputado federal David Miranda (PSOL-RJ) prometeram acionar o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Ministério Público Federal, respectivamente, para que Ribeiro seja investigado pelo crime de homofobia.

Na cobertura da mídia após a divulgação da entrevista, senti falta de um maior destaque em relação à afirmação do ministro quando indagado sobre as medidas do governo para valorizar a carreira docente. Como resposta, Milton Ribeiro deu vazão a todo um imaginário social que percebe os professores como profissionais desqualificados, que não merecem respeito, reconhecimento e consideração: “Hoje ser um professor é ter quase que uma declaração de que a pessoa não conseguiu fazer outra coisa”.

É bem verdade que os baixos salários, as cargas horárias extenuantes e uma série de dificuldades que atravessam o dia a dia daqueles que dedicam parte da vida a ensinar e fazer valer a função social da educação têm afastado muitos educadores das salas de aula. Contudo, é preciso refutar a ideia de que escolhemos o ensino por falta de opção ou por não termos condições de exercer funções consideradas de maior prestígio social.

Escolhi ser professora. Tenho muito orgulho disso. Para mim, o desejo de lecionar se revelou ainda na infância. Ao contrário da maioria das meninas da minha idade, nunca gostei de brincar de bonecas. Não havia diversão maior do que improvisar salas de aula na casa da Aline, minha amiga querida. Nessa “brincadeira”, aos dez anos, alfabetizei a pequena Bárbara. Sou incapaz de dizer o que senti na primeira vez que a vi escrevendo o próprio nome. Ao imitar a maneira de pegar no lápis da “professora”, que é canhota, a letra “B” saiu espelhada, o que significou uma das cenas mais bonitas que testemunhei em toda a minha vida.

Escolhi ser professora. Tenho muito orgulho disso. Para mim, o desejo de lecionar se revelou ainda na infância

Cresci sonhando com o momento em que finalmente assumiria uma sala de aula. Não foi à toa que optei pelo curso de História. Na faculdade, mentalizava planos de aulas. Pensava nos filmes e músicas que utilizaria para ampliar o entendimento de determinados temas. Enquanto ouvia discos do Zé Keti, do Chico Buarque, do Caetano Veloso, do João Bosco e da Elis Regina, pensava nas lições sobre o período da ditadura militar.

Meu sonho se materializou em 2008, quando assumi um cargo em uma escola do município de Ribeirão das Neves, região que, conforme assinalou Paulo Freire, desde “cedo se aprende que só a custo de muita teimosia se consegue tecer a vida com sua quase ausência – ou negação –, com carência, com ameaça, com desespero, com ofensa e dor”. Outro dia, minha mãe me lembrou desse período: “Luana, lembra quando você deu aula numa escola em que tinha de atravessar uma pinguela? Eu dizia: ‘Oh, meu Deus! Protege a minha filha! Não deixa acontecer nada com ela!’. Mas enquanto você ficou lá, você cavou, cavou, cavou. Até achar todo ouro e toda prata que tinha naquele lugar”.

Ao longo desses últimos doze anos, vi muitas injustiças e tragédias, mas testemunhei também o poder transformador da educação. Por meio do Facebook, soube que a Larissa, minha aluna em 2012, em um verdadeiro ato de insubordinação, acabou de se formar em Direito. Negra e filha das classes pobres, a presença dela na universidade e o diploma ainda causam indignação em parte da elite deste país.

Ao longo desses últimos doze anos, vi muitas injustiças e tragédias, mas testemunhei também o poder transformador da educação

Não faz muito tempo, o Lucas, que também foi meu aluno em 2012, enviou uma mensagem, que me arrancou um bocado de lágrimas. Com a autorização dele, transcrevo alguns trechos: “Lembro que na época você nos deu uma atividade na qual deveríamos fazer uma redação sobre as cotas para negros. Não me lembro exatamente das palavras escritas, mas me lembro que, por ignorância e preconceitos enraizados, escrevi contra as cotas. Hoje vejo o quão errado foi aquele texto! Hoje enxergo o quão necessária é a existência de cotas raciais em universidades e o que isso representa! Diante disso, queria te pedir perdão por aquele texto e por todas as outras atitudes negativas que eu tive com você, que no fundo representavam um preconceito velado! Hoje tenho me desconstruído e tentado reconstruir muitos valores… o caminho ainda vai ser longo, pois ainda há muito o que mudar em mim mesmo. E por mais difícil que seja, sei que vou conseguir!”.

A minha caminhada como educadora tem resultado em prêmios, honrarias e distinções. Não foi fácil chegar até aqui. Sou grata aos colegas de jornada e aos estudantes com quem aprendo e ensino. As tentativas de matar a minha paixão, a paixão que muitos professores nutrem pela educação, são constantes. Durante muito tempo, preferi silenciar o quanto sou feliz pela escolha que fiz. Temia ser incompreendida. A felicidade que me invade quando entro em uma sala de aula, a emoção que toma conta do meu ser quando falo da minha carreira não ofuscam as minhas vistas. Sei e sinto na pele o que significa ser professor neste país.

Porém, com a educadora afro-americana Bell Hooks, aprendi que ensinar com entusiasmo e afirmar o orgulho que sinto da minha profissão também são formas de exigir a valorização docente, de resistir às tentativas incessantes de desqualificação, ao descaso e a toda forma de mediocridade.

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