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O golpe de Estado é o mais violento crime político em qualquer democracia, não deveria ser perdoado. Por outro lado, o STF não poderia reputar inconstitucional a concessão de anistia

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Golpistas após invadirem o Congresso Nacional, em 8 de Janeiro de 2023. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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O Supremo Tribunal Federal está responsabilizando, mediante observância do devido processo legal e aplicação da lei penal, aqueles que atacaram as instituições democráticas e o próprio sistema de direitos no fatídico 8 de janeiro de 2023. Referidos atos golpistas não podem ser encarados como mera deterioração de bens públicos. As provas são abundantes no sentido de demonstrar a intenção de depor um governo legitimamente constituído e abolir o Estado Democrático de Direito.

Nossa democracia e os símbolos dos poderes constituídos da República foram, sem precedentes na nossa história, desafiados. Atos de violência visaram implementar um golpe e isso não pode ser objeto de anistia. A invasão e a destruição dos prédios que simbolizam os Poderes de Estado, com a intenção de promover intervenção militar e depor o governo eleito, atentaram contra a própria existência da democracia constitucional brasileira, e isso não pode ser subestimado. Tivessem os bolsonaristas logrado êxito no deliberado propósito golpista, o sistema de Justiça e a proteção dos direitos fundamentais teriam se esfacelado, o que revela a gravidade e a reprovabilidade das condutas.

No Direito Penal, costuma-se apontar a dupla função da pena. Em primeiro lugar, a imposição de sanções criminais é encarada como retribuição à prática de condutas socialmente reprovadas e tipificadas em lei como tal. Em segundo lugar, possui função preventiva, pois, em sua dimensão social, desempenha o efeito pedagógico de reafirmar os valores civilizatórios e inibir comportamentos indesejáveis.

É por essas razões que as condutas devem ser rigorosamente sancionadas nos termos da lei, impondo-se a devida responsabilização aos executores e, com maior severidade, aos mandantes e financiadores dos atos golpistas. A intentona golpista de 8 de janeiro de 2023 é, certamente, o maior ato de agressão à democracia brasileira desde a redemocratização da década de 1980. O golpe de Estado é o mais violento crime político em uma democracia constitucional. No plano constitucional, a responsabilização criminal deve ser suficientemente intensa para dissuadir qualquer nova manifestação dessa natureza. Consequentemente, não há que se falar na concessão de anistia.

A anistia não deve ser concedida em nenhuma hipótese, na medida em que representaria uma espécie de alvará para a violência como prática da ação política no Brasil. Ademais, esse perdão seria ainda mais indesejável se concedido antes que o Supremo Tribunal Federal conclua o julgamento de tais crimes, sob pena de haver grave e indesejável estímulo ao golpismo.

É preciso deixar para a história o recado contundente de que esse tipo de manifestação autoritária jamais será admitido, ao passo que a anistia, em vez de ensejar uma suposta pacificação nacional, acirraria ainda mais a vivenciada polarização. Não se pode, por óbvio, obstar o debate público no sentido da anistia. Entretanto, é preciso desconstituir a falácia de que ela seria capaz de promover uma suposta reconciliação.

De todo modo, caso os poderes constituídos venham conceder a anistia, entendemos que não deveria o Supremo Tribunal Federal reputá-la inconstitucional. Seria importante o exercício da autocontenção diante do exercício da competência constitucionalmente atribuída.

Nossa Constituição prevê como insuscetíveis de anistia os crimes de tortura, tráfico de drogas, terrorismo e os definidos como hediondos, ao passo que a grande maioria dos processos relativos à intentona golpista são relativos aos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado, deterioração do patrimônio tombado e associação criminosa.

Especificamente com relação ao crime de terrorismo, rememoremos que o nosso sistema penal adotou um enquadramento estrito ao exigir, para a sua configuração, a prática de atos típicos com a finalidade de provocar, por exemplo, o terror social ou generalizado, o que não restou configurado na intentona golpista.

Nesses termos, caso os poderes constituídos da República exerçam a legítima prerrogativa constitucional, a concessão da anistia não deveria ser desconstituída pelo STF. De todo modo, consignemos que, ao contrário de suposta pacificação, a concessão de anistia geraria o indesejável efeito de fomentar a tolerância com o golpismo. Não pode haver concessões quando está em risco o próprio sistema de direitos. •

Publicado na edição n° 1315 de CartaCapital, em 19 de junho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Escolha de Sofia’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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