Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Era domingo

O dia vermelho no calendário era o dia de se deliciar com aqueles jornalões

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Num dia desses eu me lembrei de um cartum do Millôr Fernandes em que ele abre a porta da sua casa e quando vê o Estadão de domingo jogado em cima do capacho, exclama:

– Meu Deus, o que aconteceu ontem em São Paulo?

Era assim, os jornais de domingo pesavam uns cinco quilos e tinham quase trezentas páginas e não sei quantos cadernos, suplementos e revistas, sem contar aqueles cadernos que eram só publicidade. Era leitura pra semana inteira.

O barato, às vezes, era comprar os jornalões no final da tarde do sábado, saindo do forno, ainda quentes, manchando nossas mãos de tinta.

Mas ler mesmo, era no domingo à tarde. A gente deitava na rede, levava aquele calhamaço junto e começava a colocar os cadernos em ordem, jogando no chão uns dois quilos de classificados. Eram uns cinco minutos que durava essa operação.

Esses classificados no chão, deixávamos pra espiar depois, mais tarde, com calma. Dávamos uma olhada, mesmo que não estivéssemos procurando um apartamento pra alugar, uma casa pra comprar, um carro velho pra trocar. Mesmo que não estivéssemos atrás de um emprego de almoxarife, de escrevente datilógrafo ou estenodatilógrafo.

Procurando com calma, a gente encontrava de tudo naqueles páginas: uma máquina de costura Singer, uma máquina de escrever IBM de bolinha, uma geladeira Kelvinator vermelha ou uma televisão Colorado RQ.

Mesmo sendo um jornalão conservador, uma gostosa, 18 aninhos, iniciante, se oferecia por ali.

Tinha o primeiro caderno, o de Política Nacional, Internacional, o caderno de Economia, o caderno de Esportes, o caderno de Variedades, o caderno de Cidades, o suplemento Feminino, o suplemento Agrícola, o de Turismo, o de Literatura, o de Cultura, a Folhinha, o Globinho, o Estadinho, o Gurilândia.

A Folha tinha a revista São Paulo, já teve a Folha D, já teve o Mais!, o Folhateen, o Folha Viva, o Folhetim, o Ciência, o Sinapse, o Agrícola, a Folhinha, o Equilíbrio e até o resumo traduzido do The New York Times.

A gente ficava ali na rede até o dia escurecer, lendo quase tudo. Líamos até mesmo aqueles artigos traduzidos que forravam os classificados do Estadão, os textões de Raymond Aron e aquele caderno Cultura que perguntava na capa: Por que ler Tocqueville hoje?

Os jornais eram mesmo enormes, pesados, e quando a gente saia da rede pra ir até a geladeira pegar uma Coca já meio choca, vinha aquela dor de consciência: Meu Deus, faltou tanta coisa pra ler.

Ler os jornais de domingo era um prazer que não tinha preço. No final do dia, era aquela preguiça, aquela jornalada esparramada pelo chão, algumas páginas dobradas, amassadas, pisadas e até recortadas.

Era pauta que não acabava mais. Os repórteres saiam às ruas durante a semana, muitas vezes sem um assunto definido. Nos becos, nos mercados, nos ônibus, descobriam histórias extraordinárias que eram bancadas pelo editor-chefe que ia bolando, durante a semana, a edição de domingo.

Oito horas, vinha o show da vida, aquela mulher linda e colorida saindo da água, o humor de Chico Anísio, as reportagens assustadoras do Hélio Costa, os clipes do Raul Seixas, a zebrinha anunciando o resultado da Loteria Esportiva, o Mister M e os gols do Fantástico.

E depois, vinha aquele bode. Aquela música anunciando que o domingo estava acabando e a gente ali comendo um resto de macarronada esquentada com a Coca já totalmente choca, a certeza que o dia seguinte era segunda-feira.

O único consolo era saber que, na segunda, tinha o caderno de Esportes, com as tabelas atualizadas de todos os campeonatos estaduais e internacionais, aquelas fotos maravilhosas que lembravam o Canal 100, aquela radiofoto da bandeirada final da fórmula 1, as barbadas do turfe e a última página com a seção Penalty, de Otelo. Adorava recortar o Diploma de Sofredor e entregar pro chefe na firma, logo cedo.

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