Opinião
Epidemias mudam de fato as sociedades, nem sempre para melhor
Gostaria, como muitos, de ver esta crise despertar no mundo a necessidade de reduzir as desigualdades sociais
Primeiro foi a China, depois a Europa, agora os Estados Unidos. Há uma geografia das pandemias. E uma história política também. A peste Justiniana precipitou a queda do Império Romano e a sua divisão entre Oriente e Ocidente. A Peste Negra europeia, para além de ter feito nascer a prática da quarentena e os primeiros códigos de saúde pública, marcou também o declínio econômico e político da região do Mediterrâneo. O coronavírus não tem a letalidade da bactéria da peste, mas as consequências econômicas da atual pandemia serão tão fortes que não deixarão de ter consequências na política mundial.
A mais importante e significativa mudança política no xadrez político mundial nos últimos 30 anos foi o súbito deslocamento do centro de gravidade econômico do Ocidente para o Oriente. Nunca um tal movimento tinha acontecido em tão curto período. Em 2014, a China passou a ser a primeira economia do mundo quando medida em paridades de poder de compra. Dito de forma simples, aquele país venceu o jogo econômico da globalização – com as regras do Ocidente, com as instituições do Ocidente e com as leis ditadas pelo Ocidente.
Na retórica desastrada do atual presidente dos EUA, a explicação para o sucesso econômico da China só pode ser uma de duas – ou resulta de uma fraude na concorrência comercial ou é consequência de acordos comerciais catastróficos que os seus ingênuos antecessores teriam estabelecido com os vários países do mundo. Ou batota ou generosidade a mais. Aliás, a sua missão como presidente consistiria justamente em alterar as regras do jogo econômico – ele, “o melhor negociador do mundo”.
Na verdade, toda essa retórica pueril pretende disfarçar a realidade evidente de que, para a administração dos Estados Unidos, o sucesso econômico chinês põe em causa a sua hegemonia mundial e é sentida como ameaça à sua própria segurança. Pela sua parte, a China tem orgulho em tudo o que conseguiu, pensa em si própria como potência política e deseja um estatuto internacional compatível com o seu sucesso. A memória histórica de Império do Meio também a leva a pensar em “destino manifesto” e a querer ocupar de novo o seu espaço no mundo como uma força central. Com esta pandemia e as suas devastadoras consequências econômicas, a única coisa que podemos esperar é a infeliz realidade do agravamento das tensões geoestratégicas entre os dois principais atores da política global.
Desde a Segunda Guerra Mundial que a Europa e o projeto de integração política se assumiram como o soft power ocidental – a voz da paz, do diálogo, dos direitos individuais, do respeito pelo direito internacional. A voz da legitimidade e não do poder. Esta crise pandêmica – que sucede à crise econômica e à crise dos refugiados – veio colocar à prova a unidade europeia de forma radical. Não haverá meio-termo. Ou a Europa aceita partilhar entre todos os países os riscos da dívida pública que resultarão desta crise ou não terá futuro enquanto projeto político.
No dia em que escrevo, Pedro Sánchez, o primeiro-ministro espanhol, redige um artigo em vários jornais europeus, colocando a questão de forma clara: “Nestes momentos, a Europa está a arriscar tudo”. Dito de outra forma – ou tudo ou nada. Ou há dívida pública mutualizada ou não haverá Europa. Enquanto isso, a Alemanha, o país mais forte economicamente e de quem todos esperavam uma atitude de liderança, parece recusar deliberadamente esse papel. Neste momento ninguém sabe se a Alemanha é a liderança da Europa ou o problema da Europa. Eis ao que chegamos.
Vejo para aí demasiado otimismo com o mundo que virá depois de ultrapassada esta emergência sanitária, o que, acredito, acontecerá rapidamente com a descoberta de uma vacina eficaz ou de retrovirais capazes de debelar a infeção. Vejo muita gente entusiasmada com o reconhecimento do papel insubstituível dos Estados nestes períodos de aflição. O editorial do Financial Times parece um pungente exercício de autocrítica, lembrando as gritantes desigualdades sociais, o papel da saúde pública, o New Deal e o Relatório Beveridge, que lançou as bases daquilo a que orgulhosamente chamávamos de modelo social europeu.
Leio, satisfeito e sorridente, a declaração de Boris Johnson (que, acabo de saber, está internado e a quem desejo rápidas melhoras) de que esta crise “nos veio lembrar a todos que existe sociedade”, numa divertida resposta histórica a uma sua antecessora que afirmou em certa ocasião que “não existe sociedade. O que há e haverá são indivíduos”.
Gostaria, como muitos, de ver esta crise despertar no mundo a necessidade de reduzir as desigualdades sociais e construir uma ordem política mais multilateral. Ao olhar para o mundo, para a desorientação ocidental e para as tendências que se adivinham, não posso, no entanto, partilhar essa confiança. As mudanças na geografia econômica sempre trouxeram consigo não a paz, o diálogo político e o comércio próspero, mas a desconfiança e a tendência para o recurso à força. A história das epidemias nunca foi apenas sobre saúde pública. Elas mudam as sociedades nem sempre para melhor.
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