Aldo Fornazieri

Cientista político, autor de 'Liderança e Poder'

Opinião

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Entre lobos, cordeiros e leões

A conduta discreta de Fachin contribui para o restabelecimento da normalidade democrática, mas o STF deve estar pronto para agir, se as circunstâncias exigirem

Entre lobos, cordeiros e leões
Entre lobos, cordeiros e leões
STF. Fachin defende o uso de câmeras corporais e veta disparos feitos de helicópteros – Imagem: Arquivo/STF
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A troca de comando no Supremo, com Luiz Edson Fachin no lugar de Luís Roberto Barroso, nos permite não apenas discutir qual deve ser a conduta ideal de um juiz do STF, mas também o papel da Corte em relação à chamada “pacificação” ou volta à normalidade democrática do País. Na atual composição do tribunal, vemos claramente que os ministros se distinguem pela conduta: uns são discretos e outros, opiniáticos.

Adotam postura discreta o próprio ­Fachin, Cristiano Zanin, André Mendonça e Nunes Marques. Os opiniáticos são Gilmar Mendes, Alexandre de ­Moraes, Flávio Dino e Luís Roberto Barroso. ­Numa faixa intermediária se colocam Cármen Lúcia, Luiz Fux e Dias Toffoli. Em regra, os discretos são cautelosos, contidos, econômicos e comedidos em manifestar opiniões fora dos autos. Já os opiniáticos são tenazes e, por vezes, ferozes na formulação de opiniões e conceitos, além de contundentes nas sentenças.

A conduta discreta parece ser a mais apropriada a um juiz em um mundo ideal, de normalidade democrática. Mas é preciso considerar que as condutas mais apropriadas se adaptam sempre às circunstâncias. Estas, nos últimos dez ou 12 anos, foram marcadas pela excepcionalidade e pela confrontação. Diante dessas circunstâncias, talvez os opiniáticos tenham percebido que é o momento de assumir o papel do leão para espantar os lobos. Moraes e Dino são os que mais encarnam esse figurino.

O STF está no meio do fogo cruzado. De modo geral, é acusado indevidamente de ativismo político. Indevidamente, porque são os partidos e os próprios políticos que o evocam o tempo todo para decidir sobre qualquer disputa. Em outras palavras, os políticos se mostram incapazes de resolver seus problemas e arrastam as querelas para o terreno judicial.

Os eventos de 2013 que marcaram a emergência da extrema-direita, a disputa eleitoral de 2014 e o questionamento do resultado por parte de Aécio Neves, o impeachment puramente político contra Dilma Rousseff, os retrocessos trabalhistas e sociais do governo Temer e a ascensão do bolsonarismo em 2018 empurraram a conjuntura para outro patamar, com crescentes desafios à ordem constitucional. Quebrou-se a normalidade democrática com um vasto leque de ataques vindos do Executivo, do Legislativo, das ruas e das redes, com retóricas de conflagração e de ódio, resultando na trama golpista e no 8 de Janeiro.

A denúncia oferecida pela Procuradoria-Geral da República e o julgamento do STF foram inequívocos em apresentar provas abundantes das investidas para quebrar a ordem constitucional e democrática. A conduta do Supremo e, em particular, a de Alexandre de Moraes, foi adequada e compatível com a energia e autoridade necessárias para enfrentar os ataques à democracia e ao Estado de Direito. Ser frouxo e condescendente nesses enfrentamentos significaria deixar as portas abertas para o golpismo.

Mesmo depois das condenações, a trama golpista não foi inteiramente derrotada, à medida que os políticos de direita não aceitam as decisões do STF e agem para descumpri-las, com projetos de anistia. É certo que a democracia é conflito e dissenso, mas é preciso respeitar as regras do jogo democrático, indispensáveis para superar pacificamente os conflitos, sejam eles políticos, econômicos ou sociais, sem o recurso à violência.

A Constituição, a ordem jurídica e as regras eleitorais são aparatos necessários para garantir o bom funcionamento da democracia, para que os conflitos alcancem resoluções satisfatórias e aceitáveis para todos. E a democracia também precisa autorreformar-se constantemente, para que evolua em sentido universalizante em direitos, liberdade, igualdade, justiça e bem-estar. Esta é a normalidade democrática que precisa ser construída.

O término dos julgamentos, o cumprimento das penas pelos condenados, a derrota das iniciativas antidemocráticas, a regulamentação das redes para impedir a viabilização do crime e do ódio são alguns desses pilares fundamentais para garantir a construção da normalidade democrática.

Quis a trama da história que o ministro Edson Fachin assumisse a presidência do STF neste momento de necessidade­ de alcançar tal normalidade. A sua natural conduta discreta e contida parece adequada para que o Supremo contribua de forma decisiva para essa tarefa cardeal de nossos dias. Mas o Supremo, como guardião da Constituição democrática, deverá estar sempre vigilante e pronto para agir com os seus leões, se as circunstâncias exigirem. •

Publicado na edição n° 1382 de CartaCapital, em 08 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Entre lobos, cordeiros e leões’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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