

Opinião
Enredado em si mesmo
O principal problema do governo é o próprio governo


A queda de popularidade, seus impasses internos e na relação com o Congresso, os ziguezagues da política externa, sua incapacidade de mobilizar as bases sociais para um engajamento mais ativo, as confusões na Petrobras, desarticulação política e falhas de comunicação são ingredientes, entre outros, que explicam o mau momento do governo perante a opinião pública. Esses elementos mostram que o principal problema do governo é o próprio governo. Um governo enredado em suas próprias incapacidades.
As principais são de natureza política, pois no plano da economia não se pode dizer que o governo vai mal. O desemprego no período do terceiro mandato de Lula tem caído. A taxa para o mês de fevereiro é a menor desde de 2015. No ano passado, a renda do trabalho cresceu 11,7% e o número de empregos com carteira assinada continua acima dos 100 milhões. O Banco Central, o Ministério da Fazenda e os analistas de mercado elevaram as previsões de crescimento do PIB para 2024. Há indícios de que ele poderá ser superior aos 2%, acima das expectativas iniciais. É verdade que há uma elevação dos preços dos alimentos, mas esta inflação tem uma natureza sazonal e logo, principalmente os preços dos hortifrútis, deverá cair.
Mesmo com a situação relativamente confortável na economia, as últimas rodadas das pesquisas de opinião mostraram uma queda da avaliação positiva do governo e uma alta da avaliação negativa. Na contramão, as pesquisas mostraram uma alta da avaliação positiva do STF e do Congresso e uma queda na avaliação negativa.
O governo e as esquerdas em geral parecem não ter compreendido a natureza da política na era digital. Boa parte do chumbo que o bolsonarismo atira contra o governo nas redes é oferecido pelo próprio governo, seja por afirmações disparatadas de alguns de seus integrantes, seja por crises desnecessárias como a da Petrobras. Alguns integrantes do governo e do PT parecem não compreender como funciona o mercado de ações nem a sua importância para as empresas. Chegam a acusar aqueles que investem em ações de especuladores. A espuma criada na crise da Petrobras impediu que o governo se beneficiasse dos dividendos extraordinários gerados pela empresa.
Boa parte dos ministros parece enfrentar uma crise de apatia, de imobilismo e de incapacidade de ação e inovação. Com a saída de Flávio Dino para o STF, o governo ficou sem uma voz política. Enquanto o STF e o Congresso movimentam a atividade e o noticiário, no governo há uma pasmaceira. A falta de ação e de irradiação de projetos e temas desmobiliza e desengaja a militância nas redes e no debate social. O que se observa é um bolsonarismo ativo nas redes e uma esquerda desengajada. O governo não consegue agir como centro de irradiação e de mobilização política nas redes e na vida social.
O resultado é que o governo perde terreno na disputa de hegemonia. O conceito de hegemonia é polissêmico. Em regra, a hegemonia consiste na capacidade de um governo ou partido conferir direção e sentido à sociedade ou a agrupamentos sociais determinados. A hegemonia, sempre parcial nas sociedades democráticas, é construída por diferentes atividades e diferentes meios. O líder precisa ter as capacidades morais e de comando para manejar os meios e os indivíduos que lidera.
A hegemonia exercida por um governo assenta-se nas condições materiais que o governo garante aos grupos hegemonizados, do seu poder de compra ao fornecimento de serviços satisfatórios nos campos da saúde, educação e segurança, entre outros. Para que essas concessões surtam efeito, precisam, no entanto, ser amalgamadas pela ideologia, pela política, pelos valores morais, pela cultura e pela religião. Sem esse amálgama, as concessões materiais produzem efeito de baixa intensidade no ativismo e no engajamento em favor do governo. O governo perdeu capacidade de promover disputas políticas, ideológicas, culturais e morais.
Outro aspecto da hegemonia consiste em que ela tem de se estruturar em organizações da sociedade civil. Com as igrejas evangélicas, a extrema-direita ganha consistência e capacidade de expansão. As igrejas evangélicas tornaram-se a base social organizada no território e ativa na vida social.
Para sair dessa crise, o governo precisa recompor-se politicamente, recuperando a capacidade de ser um centro de difusão política, programática e de ideias e valores. Uma reforma ministerial é necessária. Caso contrário, perderá a capacidade de atração. Setores políticos do Congresso poderão deslocar-se para o campo que lhes é hostil. Os prejuízos poderão ser grandes nas eleições municipais deste ano e poderão tornar difícil o caminho para 2026. •
Publicado na edição n° 1306 de CartaCapital, em 17 de abril de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Enredado em si mesmo’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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