Gilberto Maringoni

Opinião

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Enquanto o mundo gira

A diplomacia do terceiro mandato, por enquanto, mais reage às circunstâncias globais do que propõe alternativas

Amorim continua a ser o formulador. Vieira precisa mostrar a que veio – Imagem: Márcio Batista/MRE
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Se confrontarmos os primeiros cem dias da política externa do novo governo com a diplomacia da gestão Bolsonaro, o contraste é brutal. Saíram de cena a gestão alucinante de Ernesto Araújo e o reacionarismo soft de Carlos Alberto França. A isso se soma a exuberante diplomacia presidencial exercida pelo presidente Lula, desde antes da posse. Diante do quadro, pode-se dizer sem exagero que “o Brasil voltou”, como repetem os governistas. Ambiguidades na condução dos negócios externos colocam em dúvida, porém, a existência de um projeto definido na área.

Se tomarmos por base as diretrizes emanadas pela chapa vencedora antes da eleição ou da posse, perceberemos a ausência de um plano de voo que vá além da retomada de linhas de duas décadas atrás. O exame do programa de campanha ou do relatório final do gabinete de transição governamental, divulgado no fim de dezembro, pouco esclarece sobre o tratamento a ser dado a problemas concretos, apesar de enfatizar o fim do isolamento internacional e a defesa do multilateralismo.

Há generalidades sobre temas relevantes, como “recuperar a política externa ativa e altiva”, “defender a integração da América Latina” e construir “uma nova ordem global comprometida com o multilateralismo”. Quem buscar esclarecimentos no discurso de posse do chanceler Mauro Vieira tampouco encontrará definições claras para um mundo mais complexo do que aquele encontrado pelo Partido dos Trabalhadores em 2003. A retórica diplomática exalta platitudes como “reinserir o Brasil em sua região e no mundo”, ou “atravessamos um momento (…) dos mais conturbados no cenário internacional”. O principal tema da política global, a guerra na Ucrânia e suas consequências planetárias, é tratada de passagem, como fator secundário.

Nos dois primeiros governos de ­Lula, a política externa foi comandada por um triunvirato formadoo pelo ministro Celso Amorim, pelo secretário-geral do ­Itamaraty, Samuel Pinheiro ­Guimarães, e pelo assessor presidencial Marco ­Aurélio Garcia. Os três teorizaram e expressaram com clareza um projeto que tinha nas relações Sul-Sul e na diversificação de parcerias globais suas pedras de toque, em meio à agressividade de ­Washington, embalada na guerra ao terror.

Nesses três meses, o Itamaraty parece cumprir senda quase reativa a impulsos externos. O mesmo não ocorre, no entanto, com a ação pessoal do presidente da República. Sua atividade começou antes da posse, em novembro, na COP-27, a conferência da ONU voltada às pautas climáticas, realizada no Egito. Apesar da presença de mais de 80 chefes de Estado, Lula foi a atração principal.

Em sua primeira viagem oficial, em 23 de janeiro, o ex-metalúrgico foi à Argentina e ao Uruguai, o que materializou a volta do Brasil à Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos ­(Celac). Em entrevista coletiva na Casa Rosada, ao ­lado do presidente Alberto Fernández, traçou ao menos duas grandes linhas de atuação para a região: a volta do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) como financiador de empresas brasileiras no exterior e a defesa da soberania de Venezuela e Cuba. A essas iniciativas se somaram o retorno à União de Nações Sul-Americanas ­(Unasul) e a reconstituição da Organização do ­Tratado de ­Cooperação Amazônica (Otca), além do reforço ao Mercosul.

Uma semana depois, em visita ao Brasil, o primeiro-ministro alemão, Olaf Scholz, fez um incômodo apelo de alcance global. Acabou por ouvir constrangido, numa coletiva de imprensa, uma recusa enfática do anfitrião: “O Brasil não tem interesse em passar munições para serem utilizadas entre Ucrânia e Rússia”. Em seguida, condenou a invasão por parte de Moscou e propôs a formação de um grupo de países que pudesse funcionar como mediador em busca da paz. Consta que houve ruí­dos internos no tratamento do principal foco de tensões internacional. Vieira, em entrevista à Veja, em 10 de fevereiro, aparentemente fez uma interpretação livre da condenação presidencial à ação russa: “Ao contrário do governo Bolsonaro, agora o Brasil saiu de cima do muro”. A afirmação materializou-se em votação na Assembleia-Geral da ONU, duas semanas depois.

O presidente aproveita para reconstruir as pontes dinamitadas por Bolsonaro

O Brasil somou-se abertamente à Otan contra a Rússia, numa resolução em que a opção prudente para um país neutro seria a abstenção. Foram 141 votos contra Moscou, 7 a favor e 33 abstenções. Quatro dos países dos BRICS não escolheram nenhum dos lados. Na América Latina, Argentina, Chile, México e Colômbia somaram-se à maioria. A medida incorporou um apelo à paz, em deferência à sugestão de Lula, mas a diretriz geral emanou do Departamento de Estado: qualquer proposta de cessar-fogo só será viável caso a Rússia recue para posições anteriores a 2014, época do golpe da Praça Maidan, quando um governo pró-Moscou foi derrubado em favor de um aliado de Washington.

Em 21 de março, numa demonstração de inabilidade, o diplomata voltou à carga em entrevista ao portal Metrópoles, logo após o controverso mandado de prisão de Vladimir Putin expedido pelo Tribunal Penal Internacional. Segundo ele, uma visita do presidente russo ao Brasil “pode levar a complicações, eu não tenho dúvidas”. Detalhe: o chanceler fez a afirmação às vésperas da data em que o presidente Lula visitaria a China, aliada estreita da Rússia.

Vieira é um diplomata experiente, com quase cinco décadas de atividade no ­Itamaraty. Foi embaixador em Buenos ­Aires, Washington e na ONU, três dos mais importantes postos de representação no exterior. Nunca teve, porém, uma atividade destacada como formulador político. Os deslizes ministeriais têm sido corrigidos na prática em ações que envolvem de alguma maneira Lula e o ex-chanceler ­Celso Amorim, atual assessor presidencial.

A primeira delas ocorreu no Conselho de Segurança da ONU, em 29 de março. Em pauta, uma proposta da Rússia, apoiada pela China e pelo Brasil, pela abertura de uma investigação independente sobre o atentado aos gasodutos Nord ­Stream, que conectam Alemanha e Rússia pelo Mar Báltico. Doze países comandados pelos Estados Unidos se abstiveram, entre eles Grã-Bretanha, França, Suíça, Japão e Equador. A iniciativa foi rejeitada.

A segunda foi a discreta visita de Amorim a Moscou no mesmo dia, sendo recebido por Vladimir Putin, algo raríssimo em se tratando de representantes ocidentais. A terceira foi a indicação da ex-presidenta Dilma Rousseff para a presidência do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), o banco dos BRICS.

No 101º dia de governo, em 11 de abril, o presidente Lula embarcará com numerosa delegação para a China. O périplo de quatro dias e intensa agenda no campo dos investimentos e negócios deverá contrastar com os magros resultados do bate e volta de pouco mais de 24 horas feito a Washington em 10 de fevereiro, com direito a duas horas de conversa com Joe Biden. Não à toa, democratas e republicanos queixam-se abertamente da aproximação Brasília-Pequim, não faltando vozes exaltadas a clamar por sanções contra o Brasil. Ao que parece, o projeto de política externa de Lula 3.0 está de fato sendo construído a quente. •


*Professor de Relações Internacionais da UFABC e coordenador do Observatório de Política Externa Brasileira (Opeb).

Publicado na edição n° 1254 de CartaCapital, em 12 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Enquanto o mundo gira’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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