Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Enquanto isso, vamos esperando o novo normal

Que dia vou pegar o primeiro avião com destino a felicidade?

Ato Público cobrando autoridades sobre o Massacre de Paraisópolis. Foto: Rovena Rosa/Agencia Brasil
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Hoje eu não vou sair de casa não. Quero preguiça, ajeitar o altar dos meus santos, raspar a parafina acumulada, renovar a vela, riscar o fósforo. Perdemos Dom Pedro Casaldáliga, perdemos Aldir Blanc, Nirlando Beirão, Moraes Moreira, Enio Moricconi, Chica Xavier, Gilles Lapouge, Antônio Bivar, Rodrigo Rodrigues e outras cem mil pessoas neste 2020, o ano que devia terminar logo. Hoje me resta ir pro sofá, pra rede, pro colchão. Molhar as plantas, catar as coconilhas escondidinhas nos galhos, passar azeite nas folhas de ficus para que elas sobrevivam brilhantes, firmes e fortes. Hoje é domingo, vou ficar distante do noticiário, ao menos uma vez na semana. É domingo aqui e já quase segunda no Vietnã. Hoje é dia de escutar o Jardim Secreto de Claudio Santoro, os cantos afro de Matheus Aleluia, hoje é dia de ouvir Hamilton de Holanda e Mestrinho interpretando Drão e o Trem das Onze na sanfona e no violão. Drão, os meninos são todos são e eu não posso ficar nem mais um minuto sem você. Sinto muito, amor, mas não pode ser. Se eu perder esse trem que passa agora às onze horas, só amanhã de manhã.

Sexta, sábado, domingo? Que dia da semana eu vou criar coragem e sair às ruas? Trombar nas pessoas, sentar lado a lado no ônibus junto com uma diarista justificando seu atraso pra patroa, perguntar se ele passa na Paulista, responder que horas são, tossir, espirrar, abraçar, beijar. Eu tenho medo de viver o velho normal. Entrar no elevador já cheio e lembrar daquele velho anúncio do desodorante VanEss: sempre cabe mais um. Quando vou voltar ao Itaquerão com Clarice e ouvir ela gritando bem baixinho vai, timão! Que dia vou voltar ao fogão domingo cedo pra preparar aquele couscous marroquino pros amigos, que vão chegando e chegando e enchendo a sala da minha casa? Que dia vou pegar o primeiro avião com destino a felicidade? Que dia vou voltar a Vrises, aquele povoado no interior da Grécia onde morei, onde colhi abricôs e limões sicilianos no pé? Será que ainda terei tempo de voltar a fotografar as pessoas no metrô, como faz minha amiga Patrícia Mesquita? Sabe de uma coisa? Quero espiar as bancas de revista, comer um pastel de feira, quero comer um pedaço de abacaxi nos carrinhos de frutas de Higienópolis, quero caminhar até a Livraria Martins Fontes e comprar a nova Edição do livro Admirável Mundo Novo. 

Estão matando os meninos pretos da periferia do Brasil. Não, não são invisíveis, são de carne, osso, alma e sangue escorrendo na calçada. Matando a queima-roupa, sem perguntar o nome, o numero do CPF, o nome do pai, o nome da mãe, débito ou crédito. Basta estar na rua e carregar a cor preta na pele que é suspeito número um, de crime algum. Estão ferindo o coração de mães, como aquela que guardou o bolo de aniversário do Rogério na geladeira para não derreter, para comer mais tarde, depois do parabéns. Daqui a pouco, ela vai aparecer na televisão de novo, soluçando, pedindo justiça e nada mais. Como Pedro Pedreiro, que não vem, que não vem. A nota pé, a nota seca, vai informar que os policiais foram afastados do serviço de rua e que tudo vai ser apurado. Vai nada, a gente sabe. E amanhã vai ter outro Rogério morrendo de susto, de bala ou vício, caindo sangrando na calçada esburacada de um bairro que não está no mapa. E o governador vai aparecer ao vivo e em cores dizendo que esta não é a norma da policia, que repudia o ato, prometendo apuração e julgamento dos culpados, que vão responder pelos seus atos. Vão nada! O boi já está dormindo.

Fugir pra onde? Só se for pra Pasárgada, onde sou amigo do rei. Quem sabe fugir pra Maracangalha de liforme branco? Fugir como? A pé, de carro, de ônibus, de avião, bicicleta ou caminhão? Quem sabe eu vou pegar aquele velho navio? Pensei, pensei, peguei o mapa mundi, olhei, olhei. Eu não tenho para onde ir. Quem sabe eu vou pra lua, eu mais minha muié. Lá, construir um ranchinho todo feito de sapé. Faça sol ou faça chuva eu vou fugir, nem que seja na lógica do pensamento. Olho em volta e vejo tantos bens materiais, meus discos e meus livros. Olha, pensando bem, eu só deixo a minha São Paulo no último pau de arara.

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