Elnara Negri

Livre-docente pela Faculdade de Medicina da USP e pneumologista do Núcleo Avançado de Tórax do Hospital Sírio-Libanês

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Engordar só de respirar

Vários estudos têm apontado o papel dos altos níveis de poluentes atmosféricos no ganho de peso de crianças e adultos

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A epidemia mundial de obesidade é preocupante e tem atingido crianças e adultos em todas as partes do globo. Nas últimas décadas, houve um rápido aumento no número de crianças e adolescentes com os diagnósticos de sobrepeso e obesidade, o que configura um grave problema A obesidade em crianças e adolescentes pode ter impactos físicos e psicológicos ao longo da vida. Além de estar diretamente ligada a males crônicos, como o diabetes tipo 2 e doenças cardiovasculares, pode causar problemas de auto­imagem, baixa autoestima e depressão. Alguns estudos mostram, inclusive, que pessoas portadoras de obesidade têm maior dificuldade de inserção no mercado de trabalho. Ou seja, essa condição física pode ter um impacto negativo muito mais profundo do que se imagina.

A obesidade é uma doença crônica causada por fatores genéticos, ambientais e psicossociais. Nesse cenário multifatorial, tem sido dada maior atenção, nos últimos anos, aos fatores ambientais. Vários estudos têm apontado o papel fundamental da poluição do ar no ganho de peso de crianças e adultos, uma vez que essa ação se inicia desde a vida intrauterina. Já era sabida a ligação causal direta de altos níveis de poluentes atmosféricos com doenças cardiovasculares, asma e até com diversos tipos de câncer.

O material que forma a poluição do ar é composto de uma mistura heterogênea de gases, líquidos e resíduo particulado que está se tornando cada vez mais perigosa, devido à intensificação da queima de combustíveis fósseis e à lentidão em se procurarem fontes menos poluentes de energia no mundo.

É assustador: aproximadamente 90% da população mundial está exposta a poluentes atmosféricos que excedem os limites estipulados pelas Diretrizes de Qualidade do Ar da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2021.

O índice de qualidade do ar pode ser calculado com base nas concentrações de seis poluentes: material particulado fino (PM2,5), material particulado inalável (PM10), monóxido de carbono (CO), dióxido de enxofre (SO2 ), dióxido de nitrogênio (NO2 ) e ozônio (O3 ). Vários estudos comprovam que concentrações de hidrocarbonetos aromáticos PM2,5 e NO – produtos da queima da gasolina e do diesel – no ar ambiente, especialmente durante o período pré-natal, impactam o sobrepeso e a obesidade em crianças.

Na vida adulta, a inalação de tais componentes é capaz de alterar o metabolismo em vários níveis e estimular o depósito de gordura nos tecidos. O PM2,5 tem sido muito estudado como o grande vilão das doenças secundárias à poluição, isto porque ele é tão pequeno que consegue passar a barreira dos alvéolos e cair na corrente sanguínea, destruindo e inflamando o interior das artérias, acelerando, assim, o depósito de gordura nesses vasos. O PM2,5 é formado por pequenas partículas de carbono, nas quais os hidrocarbonetos aromáticos policíclicos, além de outras toxinas e metais, são adsorvidos.

O PM2,5 é tão pequeno que consegue, inclusive, ser transportado para o interior de nossas células, produzindo uma intensa resposta inflamatória. Ele entra também nas fábricas de energia das células, as mitocôndrias, atrapalhando a queima de calorias que nelas acontece, causando uma diminuição do metabolismo, o que contribui para o ganho de peso.

Existem ainda outros mecanismos de aumento de peso associados à presença do PM2,5 no organismo. Ele consegue inflamar tanto a glândula tireoide, causando prejuízo em seu funcionamento, quanto o hipotálamo, responsável pela regulação do mecanismo de saciedade no cérebro.

Além disso, o PM2,5 inflama os músculos e o tecido adiposo. Com isso, o músculo não consegue queimar calorias de maneira eficiente e o tecido adiposo é estimulado a armazenar cada vez mais gordura. Essa combinação entre baixo metabolismo e aumento do apetite leva à promoção da obesidade. Isto é ainda mais intenso em indivíduos com tendências genéticas à obesidade e à síndrome metabólica.

Alguns hábitos de vida podem nos proteger desses efeitos. Os mais importantes são o exercício físico regular e a cessação do tabagismo. Mas, como sociedade, devemos nos unir para cobrar das autoridades medidas para a redução dos níveis de poluição atmosférica – como a melhora do transporte público e o incentivo à busca de fontes limpas de energia.

A poluição do planeta nos afeta diretamente, em nossas células. Vivendo nessa atmosfera poluída, podemos, realmente, engordar só de respirar. •

Publicado na edição n° 1315 de CartaCapital, em 19 de junho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Engordar só de respirar’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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