Arthur Chioro

Ex-ministro da Saúde

Opinião

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Engodo em pílulas

É preciso proteger a saúde da população contra comerciantes inescrupulosos que fazem da vida uma mera mercadoria

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Foto: AFP
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A escolha do tema desta coluna foi instigada pela reportagem de capa de CartaCapital, que trata dos produtos com alegação terapêutica. Suplementos e medicamentos isentos de prescrição médica, que não possuem tarja vermelha ou preta em suas embalagens, podem ser anunciados à população de forma geral. Não é admissível, todavia, o uso de recursos que possam tornar a informação falsa, incorreta ou que cause confusão. Afinal, a publicidade define padrões de mercado e de comportamento das pessoas.

Como médico, atuo há 26 anos em um Centro de Controle de Intoxicações. Atendi muitos casos de pacientes que deram entrada em serviços de urgência e emergência, vitimados por suplementos e medicamentos vendidos como inofensivos. A cultura de uma vida saudável e a busca de soluções para doenças e problemas de saúde, principalmente os crônicos, que tendem a ser mais prevalentes nos idosos, levam muitas pessoas a adquirir esses produtos sem orientação e prescrição médica.

Trata-se de uma relação marcada pela assimetria de poder e de conhecimento que se estabelece entre comerciantes inescrupulosos, os quais lançam mão de propaganda enganosa, explorando a boa-fé alheia. Aproveitam-se de pessoas que buscam desesperadamente a cura ou um lenitivo para seus sofrimentos físicos, mentais e até mesmo para seus vícios.

A quem compete coibir tal situação? Muitos acreditam que a fiscalização da publicidade de medicamentos ou de suplementos seja da Anvisa. Ao Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, formado pela atuação articulada desse órgão federal e das vigilâncias sanitárias dos municípios e dos estados, compete promover a proteção da saúde da população por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados. E entre os bens e produtos submetidos ao controle desse sistema estão os medicamentos, suas substâncias ativas e demais insumos, processos e tecnologia.

A tarefa de impedir que a publicidade enganosa ou abusiva cause problemas ao consumidor é atribuída ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária, conhecido pela sigla Conar, entidade não governamental formada por publicitários e profissionais de outras áreas. Um dos preceitos éticos básicos defendidos pelo Conar é que todo anúncio deve ser honesto e verdadeiro, respeitar as leis do País e ser preparado com o devido senso de responsabilidade social.

Mas, quando a venda de um produto relacionado à saúde é feita de forma abusiva e coloca em risco a saúde pública, impõem-se a intervenção dos órgãos de defesa do consumidor, como o Procon, e a atuação firme da Vigilância Sanitária. Para que as ações de fiscalização sejam feitas, é necessário que seja registrada uma denúncia e que o consumidor filme ou fotografe o anúncio que traz a informação falsa ou abusiva.

A questão ganha contorno ainda mais complexo quando envolve profissionais de saúde. Os órgãos de classe, como é o caso do Conselho Federal de Medicina e de suas representações em cada estado, têm normas reguladoras para a publicidade médica, visando coibir o sensacionalismo, a autopromoção exagerada, a mercantilização, abusos em comerciais, propagandas enganosas e incentivo à automedicação.

A atuação dos conselhos profissionais ocorre apenas nas situações que envolvem publicidade médica, por qualquer meio de divulgação, sob iniciativa, participação ou anuência do médico. Qualquer anúncio em revistas, jornais, rádios, tevê, internet, WhatsApp ou postagens em redes sociais, feito por um profissional da saúde ou por uma instituição ou serviço de saúde público ou privado, é considerado publicidade médica.

O médico pode dar entrevistas e publicar artigos sobre assuntos médicos com caráter informativo e educativo, mas não pode participar de anúncios de empresas ou produtos ligados à medicina. Muito menos de propaganda enganosa ou de matérias sem valor científico, ainda que a atuação de profissionais negacionistas nos conselhos tenha resultado em grave e inaceitável relaxamento da fiscalização de propaganda enganosa durante a pandemia.

Uma sociedade só pode sentir-se efetivamente protegida se puder contar com mecanismos de regulação de Estado. A atuação do Conar não tem sido suficiente para enfrentar a propaganda enganosa na área da saúde. Somente com a aplicação efetiva do Código de Defesa do Consumidor e a atuação firme e qualificada da Vigilância Sanitária e dos conselhos que fiscalizam o exercício ético-profissional será possível proteger a saúde da população contra comerciantes inescrupulosos que fazem da vida uma mera mercadoria. •

Publicado na edição n° 1266 de CartaCapital, em 05 de julho de 2023.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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