

Opinião
Engels explica o Brasil atual
Tão visionário era ele, tão essencial e libertário que pode explicar até a presente viagem de Bolsonaro ao Equador


“O jejum que aprecio é este: solta as algemas injustas, desata as brochas da canga, dá liberdade aos oprimidos e despedaça todo jugo!”
Profeta Isaías.
Em artigo recente publicado em CartaCapital, com o título “Gol Contra”, Luiz Gonzaga Belluzzo cita o economista Michael Roberts: “Nos últimos 40 anos, a globalização cumpriu os desígnios centrais do capitalismo: 1. A mercantilização acelerada de todas as esferas da vida, inclusive daquelas até agora protegidas (amor, lazer, religião). 2. A universalização da concorrência. 3. A concentração do poder econômico e a consequente desvalorização da política democrática.”
Apesar dessa brutal negociação da vida e até da morte, a primavera consegue florescer, entre rochas e espinhos, no Hemisfério Norte, literalmente.
De fato, na semana passada, estivadores do Porto de Livorno, na Itália, bloquearam cargas de armamentos destinadas a Israel, que massacrava então crianças e mulheres na Faixa de Gaza, transtornada, qual campo de concentração sionista.
Os operários italianos demonstraram que as boas sementes germinam, mesmo depois de um século.
Justamente, em Livorno, o maior filósofo político do século XX, Antonio Gramsci, fundava, em 21-1-1921, com outros companheiros e companheiras, o Partido Comunista Italiano, o PCI, que se tornaria o maior do Ocidente – e o mais democrático.
Em “Friedrich Engels – uma biografia”, de Gustav Mayer, editado pela Boitempo, o biógrafo recorda-nos que, para o biografado Engels: “A inevitável batalha entre o partido da classe operária e a oposição burguesa não poderia ser travada até que ficassem cara a cara, sozinhos.”
Não seria a esse movimento que estamos assistindo no Brasil? Na América Latina como um todo e em outras regiões do mundo, inclusive nos Estados Unidos da América?
No mesmo volume, profetizando ao parceiro Karl Marx, em carta reproduzida no mesmo volume, Engels disseca, de forma lapidar – com um século e meio de antecedência – a estrutura do golpe civil e militar de 2016, que reproduziu os mesmos padrões dos de 1954 e 64, entre outros, no Brasil.
Com efeito, verifica-se que em todos aqueles putschs as forças armadas foram instrumentalizadas pela oligarquia internacional e nacional, nos moldes do que ocorrera na França e na Prússia na primeira metade do século XIX. Nesse sentido, analisa o filósofo alemão os fatos políticos daquela quadra, de forma arquetípica, em missiva ao co-autor do Manifesto Comunista: “Está ficando cada vez mais claro para mim que a burguesia, por si, não é capaz de obter nenhum controle real; portanto, a forma normal de governo é o bonapartismo, a menos que, como na Inglaterra, uma oligarquia possa assumir a tarefa de guiar o Estado e a sociedade segundo os interesses burgueses por uma rica recompensa. Uma semiditadura no plano bonapartista mantém os principais interesses materiais da burguesia, mesmo em oposição à burguesia, mas não deixa a ela nenhuma participação no controle dos assuntos do governo. Por outro lado, a ditadura é forçada, contra sua vontade, a adotar os interesses materiais da burguesia.”
No artigo “A Europa pode se desarmar?”, Engels, como nos recorda Mayer, vai ainda mais longe: “…não há nada que impeça a abolição gradual do Exército regular; e que, se o Exército regular ainda é mantido, é mantido não por motivos militares, mas por razões políticas – em uma palavra, porque o Exército se destina à defesa não contra um inimigo estrangeiro, mas contra um inimigo doméstico.”
Com atraso de século e meio, a periferia reproduz o centro, tristemente. Conscientes disso, podemos mudar o curso da história, pois conhecer a taxonomia do monstro permite derrotá-lo.
Vale notar que Engels foi um gramsciniano avant-la-lettre, dedicando à cultura um papel protagonista na interpretação dos fatos políticos, como Mayer deixa claro naquela biografia: “Com seu vigor, discernimento seguro e desejo natural de encontrar seu lugar, ele abriu mão de suas horas de lazer para se dedicar ao estudo da literatura inglesa da época…E a leitura cuidadosa da história inglesa o ajudou a formar uma compreensão mais profunda da Inglaterra contemporânea e, assim, uma visão mais clara de seu futuro.”
O interesse das potências do Norte em reduzir o Brasil a um mero exportador de commodities também pode ser entendido pelas reflexões de Engels, a respeito da Europa de seu tempo e dos conflitos mundiais que nela ocorreriam, como Mayer assinala naquela biografia: “Ressaltou que, para que uma indústria não seja deixada para trás, ela precisa encontrar novos mercados. Se não houvesse mais novos mercados, a Inglaterra teria que proteger suas próprias indústrias punindo as de outros países. O resultado seria uma luta de vida ou morte entre as indústrias alemã e inglesa; Engels considerava que a Inglaterra venceria.” Também nessa profecia, o co-autor do Manifesto não errou quanto ao final dos conflitos, que se tornariam mundiais.
Pode parecer exagerado, mas, na obra de Mayer, encontramos na argúcia de Engels a explicação até para o recente encontro entre os ex-presidentes Lula e FHC: “…seu maior desapontamento era com o fato de que a burguesia, tanto tempo depois de 1848, ainda não era a principal força do país; e ele desejava sinceramente a queda da monarquia militar, que apoiava todas as forças da autoridade e da contrarrevolução na Europa.”
Tão visionário era Engels, tão essencial e libertário que pode explicar até a presente viagem de Bolsonaro ao Equador. Com efeito, para ser completa, a taxonomia tem de contemplar todos os seres, incluídos os inferiores.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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