Sidarta Ribeiro

Professor titular de neurociência, um dos fundadores do Instituto do Cérebro da UFRN

Opinião

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Enfrentar o medo

O golpe militar em curso busca congelar as pessoas e imobilizar as instituições, criando a paralisia necessária à consumação do ato

Para Sidarta Ribeiro, a medicina do século 20 falhou em reconhecer o potencial das drogas psicodélicas (Foto: Luiza Mugnol Ugarte)
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O medo é necessário à sobrevivência, pois permite reconhecer ameaças a tempo de evitar o pior. Diante do perigo iminente, é preciso decidir entre fugir ou lutar. Tais comportamentos antagônicos são gerados pela ativação de diversas regiões cerebrais, cuja interação neuroquímica aumenta o estado de alerta e prepara o corpo para os movimentos vigorosos que caracterizam tanto a luta quanto a fuga. Situações extremas exigem respostas extremas – e o nosso organismo é bem equipado para isso.

Entretanto, quando o medo se transforma em terror, torna-se difícil lutar ou fugir. Nesse momento, pode surgir a paralisia, seja por congelamento, seja por imobilidade tônica. Na relação entre predador e presa, o congelamento se dá quando a presa ainda não foi detectada pelo predador e tem por função diminuir as chances de ser descoberta. A imobilidade tônica acontece quando a presa foi detectada, e tem por função minimizar os ataques subsequentes.

Enquanto o congelamento envolve rigidez corporal em postura ereta e aumento da frequência cardíaca, a imobilidade tônica apresenta redução da frequência cardíaca, insensibilidade a estímulos e postura semelhante à morte.

Qualquer semelhança com o estado da democracia brasileira não é coincidência. O golpe militar em curso busca congelar as pessoas e imobilizar as instituições, criando a paralisia necessária à consumação do ato. Com exceção do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, a maior parte do judiciário está em imobilidade tônica.

O Congresso Nacional, apesar da brava minoria que enfrenta os predadores, tem uma maioria congelada de medo deles, ou com eles conivente. Os abundantes sinais golpistas emitidos pelo presidente da República e sua alcateia têm a função de assustar, mas também de anestesiar: reiterar o inimaginável até que seja imaginável e, afinal, inevitável.

Como lidar com o medo que paralisa? Se não falamos do golpe, permitimos que ele prospere na surdina. Se falamos, contribuímos para que o terror se instale.

Para lidar com medos excessivos, nossos ancestrais tiveram a genial ideia de transformar adversários em aliados. Inúmeras vezes foi selada a paz entre pessoas de grupos diferentes, até que pactos de convivência começaram a ser firmados também entre indivíduos de espécies distintas.

Há cerca de 25 mil anos, nossos avós paleolíticos começaram a trazer os lobos para perto de suas famílias. Notórios por atacar as presas mais vulneráveis, foram transformados, por cuidadosa seleção, em seres protetores das presas mais vulneráveis. A domesticação do lobo gerou uma incrível variedade de raças caninas, cada uma delas talhada para satisfazer necessidades humanas bem específicas.

Ao contrário do lobo, o cão não morde a mão do dono, pois vive para servi-lo. Como canta o cachorro no álbum Saltimbancos, de Chico Buarque, Sergio ­Bardotti e Luiz Enrique Bacalov: Corre, cão de raça/ corre, cão de caça/ corre, cão chacal/ sim, senhor/ cão polícial/ sempre estou/ às ordens, sim, senhor. Cabe perguntar, portanto, se os militares e policiais brasileiros são os fiéis cães de guarda da sociedade civil, a serviço da democracia e da República, ou se são lobos sanguinários, servidores da própria fome de poder.

Para o bem ou para o mal, essa pergunta será respondida nas eleições de 2022. Precisaremos de muita coragem e bom humor para escapar desses lobos em pele de cachorro. Recorro novamente ao sábio Chico Buarque, que não é bobo e pôs Chapeuzinho Amarelo no lugar do povo.

“O engraçado é que, assim que encontrou o lobo, a Chapeuzinho Amarelo foi perdendo aquele medo: o medo do medo do medo do medo que tinha do lobo. Foi ficando só com um pouco de medo daquele lobo. Depois acabou o medo e ela ficou só com o lobo”, escreve em Chapeuzinho Amarelo (com ilustrações de Ziraldo). “O lobo ficou chateado de ver aquela menina olhando pra cara dele, só que sem o medo dele. Ficou mesmo envergonhado, triste, murcho e branco-azedo, porque um lobo, tirado o medo, é um arremedo de lobo.”

Se queremos escapar do congelamento e da imobilidade tônica, devemos nos lembrar de que coragem não é ausência de medo, e sim disposição para enfrentá-lo. Como disse Lula no lançamento de sua pré-campanha: “Chega de ameaças, chega de suspeições absurdas, chega de chantagens verbais, chega de tensões artificiais (…) Queremos voltar para que ninguém nunca mais ouse desafiar a democracia. E para que o fascismo seja devolvido ao esgoto da história, de onde jamais deveria ter saído”.

Porque um fascista, tirado o medo, é um arremedo de fascista – na lista da justiça. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1210 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Enfrentar o medo”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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