Roberto Tardelli

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Advogado membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP. É ex procurador de justiça do Ministério Público de São Paulo

Opinião

Enchente mostra na cara o que e quem vem sendo negligenciado

Priorizamos juros da dívida, priorizamos encher a lata de meia dúzia de banqueiros a tornar a vida do cidadão menos insuportável

Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
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Não, não parece segunda-feira. A cidade não se move, a cidade não se mexe. Me lembro do profeta Raul Seixas, em seu “O dia em que a terra parou”, uma fantasia de como seria o dia em que ninguém fosse a lugar algum, simplesmente porque nada mais existisse a ser feito, porque a Terra, o planeta que gira, para desespero dos terraplanistas, houvesse se quedado inerte no imenso Nada.

Não há escolares nas ruas, porque sequer existem professores a ensiná-los ou sequer existe algo mais a ser ensinado, não há doentes porque não há mais curas. Não há planos mais a serem feitos, porque não há sentido de tempo e o futuro se apagou, ninguém mais sonha.

O caminho que era de quarenta minutos, fiz em doze. Ninguém me parou, ninguém me pediu nada, ninguém soou sirene, ninguém buzinou. No ponto de ônibus, um homem solitário era encharcado pelo carro oficial que passou a cem por hora na poça d’água. Não cruzei com nenhum pedinte. Como diria Fernando Pessoa, “ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte”.

Não muito longe, a cidade se alagou e ninguém mais consegue saber se é rio ou mar de lama fétida. Todos nossos lixos se multiplicaram com a chuva infernal que desaba faz dias. Quem viu Parasitas, viu a diferença de classe na chuva; até isso o capitalismo nos rouba.

A imensa avenida deserta agudiza a solidão e mesmo o gato de rua se encolhe. Houve um dia em que pessoas passavam aqui, carros se apertavam e se buzinavam aqui, vendedores de qualquer coisa vendiam aqui. Um rapaz cuspia fogo sobre uma corda que amarrava sabe Deus onde e ganhava um real de cada motorista. O comercial no bar da frente custava oito. Oito carros por um prato de comida não é mole, não. Arroz, feijão, ovo frito (dois) e salada com suco. Passei pelo bar e não pude afirmar se estava fechado ou aberto. Como tudo, nenhuma coisa e nem outra.

Chuvas atinge a cidade de São Paulo. Foto: Agência Brasil.

A imensa cidade fechou. A cidade infinita mostrou-se pequena e frágil. Nem ladrões nem homicidas, não há, como na canção de Raul, nada para roubar ou ninguém para matar, ninguém sequer par morrer, porque todos estão confinados, apartados, recolhidos. Nenhum ódio, nenhum amor. A cidade está deserta.

Lá longe, as pessoas se desesperam. Correm par salvar filhos, RG, um par de sapato, a carteira de vacinação. A água traz a encosta e a enconta traz a morte, o horror, a montanha inteira sobre aquele casebre; ninguém dorme desde a madrugada e não mais para onde levar tanta coisa, geladeiras, TVs, sofás, a água vai levar tudo e está anunciando que nada ficará ali. O córrego virou um braço de mar e colocou suas ratazanas para nadar.

Os carros de reportagem se acumulam e isso é mau sinal. Alguém recolhe um pequeno cão, salvando-o da morte certa e é ovacionado como se fosse herói e é um herói, porque não mediu riscos para salvar cachorrinho, todo herói é inconsequente. Um sub do sub do sub prefeito de alguma sub-secretaria dá entrevistas, mas não corre risco de ser comido vivo pelas pessoas mais concentradas em seu desespero do que nas justificativas burocráticas de um sub-zero parasitário.

Ela perdeu tudo, salvou os filhos e perdeu tudo e eles só tem a roupa do corpo. Na TV, um neoliberal diz que é preciso ensinar a pescar. O mérito é dizer sem cair na gargalhada. Maldito.

A previsão do tempo não ajuda.

Priorizamos juros da dívida, priorizamos encher a lata de meia dúzia de banqueiros, priorizamos enriquecer gente rica, priorizamos tornar a vida um inferno, priorizamos nos afogar de lama. Contaremos as crianças desaparecidas amanhã.

Quem perdeu tudo, não contaremos, simplesmente porque eles não contam.

Não, não parece segunda-feira. A cidade não se move, a cidade não se mexe. Me lembro do profeta Raul Seixas, em seu “O dia em que a terra parou”, uma fantasia de como seria o dia em que ninguém fosse a lugar algum, simplesmente porque nada mais existisse a ser feito, porque a Terra, o planeta que gira, para desespero dos terraplanistas, houvesse se quedado inerte no imenso Nada.

Não há escolares nas ruas, porque sequer existem professores a ensiná-los ou sequer existe algo mais a ser ensinado, não há doentes porque não há mais curas. Não há planos mais a serem feitos, porque não há sentido de tempo e o futuro se apagou, ninguém mais sonha.

O caminho que era de quarenta minutos, fiz em doze. Ninguém me parou, ninguém me pediu nada, ninguém soou sirene, ninguém buzinou. No ponto de ônibus, um homem solitário era encharcado pelo carro oficial que passou a cem por hora na poça d’água. Não cruzei com nenhum pedinte. Como diria Fernando Pessoa, “ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte”.

Não muito longe, a cidade se alagou e ninguém mais consegue saber se é rio ou mar de lama fétida. Todos nossos lixos se multiplicaram com a chuva infernal que desaba faz dias. Quem viu Parasitas, viu a diferença de classe na chuva; até isso o capitalismo nos rouba.

A imensa avenida deserta agudiza a solidão e mesmo o gato de rua se encolhe. Houve um dia em que pessoas passavam aqui, carros se apertavam e se buzinavam aqui, vendedores de qualquer coisa vendiam aqui. Um rapaz cuspia fogo sobre uma corda que amarrava sabe Deus onde e ganhava um real de cada motorista. O comercial no bar da frente custava oito. Oito carros por um prato de comida não é mole, não. Arroz, feijão, ovo frito (dois) e salada com suco. Passei pelo bar e não pude afirmar se estava fechado ou aberto. Como tudo, nenhuma coisa e nem outra.

Chuvas atinge a cidade de São Paulo. Foto: Agência Brasil.

A imensa cidade fechou. A cidade infinita mostrou-se pequena e frágil. Nem ladrões nem homicidas, não há, como na canção de Raul, nada para roubar ou ninguém para matar, ninguém sequer par morrer, porque todos estão confinados, apartados, recolhidos. Nenhum ódio, nenhum amor. A cidade está deserta.

Lá longe, as pessoas se desesperam. Correm par salvar filhos, RG, um par de sapato, a carteira de vacinação. A água traz a encosta e a enconta traz a morte, o horror, a montanha inteira sobre aquele casebre; ninguém dorme desde a madrugada e não mais para onde levar tanta coisa, geladeiras, TVs, sofás, a água vai levar tudo e está anunciando que nada ficará ali. O córrego virou um braço de mar e colocou suas ratazanas para nadar.

Os carros de reportagem se acumulam e isso é mau sinal. Alguém recolhe um pequeno cão, salvando-o da morte certa e é ovacionado como se fosse herói e é um herói, porque não mediu riscos para salvar cachorrinho, todo herói é inconsequente. Um sub do sub do sub prefeito de alguma sub-secretaria dá entrevistas, mas não corre risco de ser comido vivo pelas pessoas mais concentradas em seu desespero do que nas justificativas burocráticas de um sub-zero parasitário.

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Quem perdeu tudo, não contaremos, simplesmente porque eles não contam.

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