Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Encaixotando Fagner

Joguei fora todos os discos do Lobão e da banda Ultraje a Rigor. Nunca tive coragem de jogar os do Fagner

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Pouco antes de deixar o país, no início da década de 1970, comprei o disco Manera Fru Fru, Manera, de Raimundo Fagner. Foi um dos últimos long-plays que comprei antes de pegar o avião da Varig com destino ao desconhecido. Estávamos em busca de um movimento musical que substituísse o sucesso de Chico, Caetano, Edu, Milton, Tom, Lyra, Hime e tantos outros. E Fagner me pareceu o cara.

Manera Fru Fru, Manera era uma espécie de Sgt. Peppers do cearense, assim como foi Pérola Negra para Luiz Melodia, Alucinação para Belchior, Pavão Misterioso para Ednardo, Krig-Ha Bandolo para Raulzito e o Clube da Esquina para Milton.

O primeiro disco de Raimundo Fagner voou comigo pra Paris em forma de fita K7 da Basf e rodou naquele pequeno apartamento da Rue de la Roquette até virar pó. Longe daqui, chorava ao ouvir sua voz cortante lamentando que só deixaria o seu Cariri no último pau de arara ou declamando os versos de Mucuripe: “vento, vela, leva-me daqui”.

Durante os anos distante do Brasil, recebi todos os discos de Raimundo Fagner pelo correio: o primeiro foi Ave Noturna, em que ele abria dizendo:

“Não chore se eu disser que já vou

Você quem quis assim, vai sofrer

Não faça eu perder a razão

Você machuca o meu coração”.

À beira do Sena, eu andava triste chutando folhas secas do outono, cantarolando Riacho do Navio:

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“Riacho do navio corre pro Pajeú

O rio Pajeú vai despejar no São Francisco

O Rio São Francisco vai bater no meio do mar”.

Depois chegou o Traduzir-se, com poemas de Florbela Espanca (“Minh’alma de sonhar-te anda perdida/Meus olhos anda cegos de te ver/Não és sequer a razão do meu viver/Pois que tu és já toda a minha vida”) e, mais tarde, veio Raimundo Fagner cantando Sinal Fechado, de Paulinho da Viola, numa gravação histórica, bem como As rosas não falam, de Cartola. De chorar, de tão bonita.

Recebi também pelo correio uma edição do jornal Opinião que trouxe, na última página, uma entrevista com o cantor e compositor que já estava no topo do hit parade. Com o título “Eu quero ser o rei da juventude”, Fagner brincava com o rei de verdade e de plantão, Roberto Carlos. Antes de entrar na linha do tempo do sucesso fácil, ainda lançou Orós, que teve o auxílio luxuoso de Robertinho de Recife e Hermeto Pascoal.

A partir daí, a história de Raimundo Fagner é outra. Ou a minha história é outra, não sei. Continuei comprando seus discos depois que voltei ao Brasil, mas nunca mais encontrei aqueles versos cortantes e contundentes da sua juventude. Acontece.

Confesso o que muitos podem achar uma heresia, que é descartar obras. Um dia, joguei fora no latão de lixo do meu prédio todos os discos do Lobão e todos da banda Ultraje a Rigor, comandada por Roger Moreira. Mas, nunca tive coragem de jogar fora os discos de Raimundo Fagner. Estão todos aqui guardados dentro de uma caixa preta e branca, até que a plenitude e a morte nos separem.

Nos últimos anos, o cantor e compositor só soube pisar na bola. Apareceu na televisão elogiando Aécio Neves, fez uma musiquinha pro ex-juiz Sergio Moro e, nas últimas eleições, gravou um vídeo de 35 segundos afirmando que o seu candidato a presidência da Republica era Jair Bolsonaro. Ele termina a gravação dizendo: “Estamos juntos”. Na semana passada, em entrevista ao jornal O Globo, Fagner disse que o presidente da extrema-direita está fazendo as escolhas certas e que, por enquanto, está indo tudo muito bem.

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A caixa preta e branca continua aqui, até quando, não sei. Nunca mais ouvi Penas do Tiê, Sina ou Pé de Sonhos. Tenho preferido Walter Franco na vitrola:

“É uma dor canalha

Que te dilacera

É um grito que se espalha

Também pudera

Não tarda nem falha

Apenas te espera

Num campo de batalha

É um grito que se espalha

É uma dor

Canalha”

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