Carlos Bocuhy

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Presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental, o Proam.

Opinião

Em Davos, o Brasil deve ir além do ajuste fiscal

As necessidades globais humanitárias colocam o Brasil, de forma estratégica, como interlocutor para impulsionar um reebranding civilizatório

(Foto: Fabrice COFFRINI / AFP)
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Cooperação em um mundo fragmentado é o lema do Fórum Econômico Mundial de Davos, que acontece nesta semana na Suíça. Mesmo com o avanço das alterações climáticas, no ano passado os jatos particulares que aportaram no fórum emitiram aproximadamente 9.700 toneladas de dióxido de carbono, equivalente à emissão de 350 mil carros. Entidades ambientais como o Greenpeace apontam a falta de coerência em se discutir aquecimento global utilizando meios de transporte poluentes que só fazem agravar a situação.

A fragmentação do mundo contemporâneo não é apenas incoerência nos meios de transporte. É também representada nos conflitos de interesse. A COP28, que ocorrerá neste ano nos Emirados Árabes, que tem por objetivo a eliminação dos combustíveis fósseis que causam o aquecimento global, será coordenada pelo sultão Ahmed Al Jaber, presidente da Abu Dhabi Oil Company, uma das maiores empresas petrolíferas do mundo.

“Para discutir a erradicação da dengue não se deve convidar os mosquitos”, ironizou a ativista sueca Greta Thumberg.

No ano passado, a Cop27 ocorrida no Egito foi esvaziada de manifestações civis em função do governo ditatorial do general Abdul Fatah Khalil Al-Sisi. Nos dois países, blogueiros que defendem direitos humanos vão para a cadeia e sofrem duras penas ao reivindicarem não-violência e reformas políticas progressistas. É o caso de Ahmed Mansoor, que cumpre dez anos de prisão em regime fechado nos Emirados Árabes. Mansoor teve seus óculos de leitura confiscados e sofre com negligência médica.

Em tais condições de cerceamento do direito de expressão e requintes de crueldade, como podem estes países totalitários sediarem conferências que necessitam de intensa participação da sociedade civil para pressionar governos a tomarem medidas necessárias?

A fragmentação em nosso mundo político contemporâneo impede a integração necessária para fazer real os acordos multilaterais colaborativos. Por exemplo, a reparação por perdas e danos, o principal ponto de pauta na COP27 do Egito, reivindicado por países vulneráveis há 30 anos, resultou em fundo de reparação de danos ambientais ainda sem fundos.

Países mais pobres e vulneráveis continuam a sofrer efeitos das alterações climáticas, sem expectativas de que seu sofrimento possa ser evitado ou atenuado por recursos financeiros aportados pelos maiores responsáveis pela degradação climática global.

A falta de cooperação em um mundo fragmentado também é o retrato deficitário das posturas nocivas da hegemonia geopolítica das grandes potências. Os maiores emissores, como Estados Unidos e China, continuam a tomar decisões políticas sem abrir mão de seu Produto Interno Bruto (PIB) baseados em combustíveis fósseis.

A busca de unidade para a solução de problemas basilares da humanidade, como o combate à fome e aos efeitos climáticos nocivos demandará um mundo de paz, cooperativo e sem fragmentações.

O Papa Francisco, em seu discurso pela Paz na Praça do Coliseu, em 25 de outubro de 2022, afirmou: “Cada guerra deixa o mundo pior de como o encontrou. A guerra é um fracasso da política e da humanidade, uma vergonhosa rendição, uma derrota perante as forças do mal”. Francisco prega esperança, ao clamar pela paz que “nasce do coração das mães, está inscrita nos rostos dos refugiados, das famílias em fuga, dos feridos ou dos moribundos”.

A guerra também é a fragmentação da humanidade, em seu estado mais perverso. A Rússia e seus interesses expansionistas, com uso de poder bélico, infringem ao mundo um duro agravamento da crise trazida pela Covid, abandonando a mesa de diálogo por um gradual desarmamento global, tema sobre o qual a Otan também deveria ter se voltado de forma efetiva há muito tempo.

O Brasil não está livre da fragmentação. A violência que se expandiu na Esplanada dos Ministérios demonstrou a carga emocional nociva que assola grande parte da população brasileira, fragmentada na compreensão da história do país, esquecida da luta pela redemocratização e do importante papel conferido às instituições democráticas.

É importante promover a reflexão sobre o atual estágio civilizatório e dificuldades trazidas pelos processos de fragmentação da humanidade, decorrentes dos jogos de interesse nacionais e setoriais. A lição já foi dura demais, considerando a barbárie que foi o século XX com suas guerras mundiais.

Um pool de organizações que inclui a ONG Engewald demonstrou na COP27 uma total dicotomia nas políticas globais: o planejamento dos setores econômicos do petróleo e gás para expansão de atividades que agregariam 115 bilhões de toneladas de CO2 na atmosfera, inviabilizando completamente as metas do Acordo de Paris consideradas suportáveis pela humanidade.

Diante das circunstâncias atuais, a representação do Brasil em Davos deve ir além de aspectos usuais esperados pelos economistas, nas expectativas sobre o déficit interno e projetos de reforma fiscal. A área ambiental brasileira não pode apenas buscar apoio econômico global no atual sumidouro de fragmentação humanitária.

Davos trará respostas transformadoras? O Brasil fará o discurso em prol da cooperação em defesa dos mais vulneráveis? Assumirá a liderança que lhe compete junto aos países emergentes como uma das cinco maiores potências responsáveis por emissões de gases efeito estufa?

As necessidades globais humanitárias colocam o Brasil, de forma estratégica, como interlocutor para impulsionar um reebranding civilizatório. A possibilidade de um governo progressista no Brasil, conduzido pelo povo como simbolizado na posse do novo governo, deve exercer sua prerrogativa de defesa dos mais vulneráveis diante do cenário dramático das mudanças climáticas.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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