Afonsinho

Médico e ex-jogador de futebol brasileiro

Opinião

cadastre-se e leia

Em campo, os acadêmicos

Ao receber a encomenda, pensei serem quatro livros. Mas, ao abrir o pacote, vi que era um único volume, tipo uma Bíblia Sagrada para quem ama futebol

Foto: Reprodução
Apoie Siga-nos no

Comecei, finalmente, a ler O Futebol Brasileiro nas Ciências Sociais, organizado pelos pesquisadores Sérgio Settani Giglio e Marcelo Weishaupt Proni (Editora Unicamp), que recebi há algum tempo.

Quando a encomenda chegou, pensei serem quatro livros, dado o peso. Mas, ao abrir o pacote, vi que era um único volume, tipo Bíblia, de assustar. Assim que iniciei a leitura, vi que é, de fato, uma Bíblia Sagrada para quem quer se orientar, a partir da pesquisa acadêmica na área das ciências humanas, no intrincado mundo do nosso futebol. O livro reúne um conjunto de autores de peso, vindos de áreas distintas, que assinam nada menos que 42 textos.

E está dividido em oito partes: política, história, sociologia, antropologia, comunicação e literatura, outras áreas (que inclui o tema do futebol-empresa, que tenho frequentemente abordado aqui), gênero, torcidas e racismos e, por fim, uma parte chamada prorrogação, na qual é abordada a polêmica sobre o VAR e suas consequências no futebol.

Maior ainda do que quando vi o texto sobre o VAR foi meu entusiasmo ao ler, na apresentação, que a Copa de 82, na Espanha, serviu de inspiração para a coletânea, e ao ver referenciados dois trabalhos acadêmicos fundamentais: o brilhante texto O Futebol Brasileiro Instituição Zero (1977), dissertação de mestrado da antropóloga Simoni Lahud ­Guedes, e Os Gênios da Pelota: Um Estudo do Futebol Como Profissão (1980), também uma dissertação, do historiador Ricardo ­Augusto Benzaquen de Araújo.

A emoção voltou a bater quando, nesse mesmo texto de apresentação, li sobre o desinteresse do meio acadêmico pelo futebol e sobre o quanto, na década de 1980, “esse estranhamento começava a ser expurgado” a partir do livro História Política do Futebol Brasileiro (1981), de Joel Rufino dos Santos, amigo que me faz muita falta. Joel fez parte do movimento Nova História do Brasil, formado por um grupo ligado ao Departamento de História do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb).

Já sei que vou ter de comunicar aos meus amigos peladeiros e sambistas que, nos próximos tempos, terei de me afastar ou, pelo menos, faltar em alguns encontros. Estarei, certamente, mergulhado de cabeça nesse universo que tanto me mobiliza.

Meu plano é começar, de forma disciplinada, pela primeira parte que, de cara, trata da recíproca negação entre o futebol e a política, tentando “compreender as diferenças e as proximidades”. O autor deduz: “Futebol é política, mas são corpos distintos”.

Emendo, nas reflexões dos pesquisadores, duas perguntas. O futebol é lazer para o torcedor e profissão para o jogador? Existem torcedores profissionais?

Encerrada a parte inicial, tenho a intenção de pular, imediatamente, para a de economia, que aborda esse tema que tanto me instiga: o futebol-empresa. Uma das coisas que me deixam cismado nesse assunto é o avanço dos estadunidenses no esporte.

Fico pensando que esse interesse vem de longe. Henry Kissinger, fã declarado de Pelé, foi responsável pela ida do Rei para os Estados Unidos.

Agora é City por todos os lados. Fora os árabes do petróleo e os russos do gás. Mas lá vamos nós.

Outro dia, falei da sensação horrível de querer deixar de assistir ao futebol profissional, depois de acompanhar alguns jogos que mais pareciam guerras. A tônica dos jogos tem sido, infelizmente, de trombadas, choques desencontrados e traumatismos.

Apesar disso, também temos tido, dentro do campo, boas razões para não desanimar. Darei três exemplos de craques que bastam para manter a nossa ilusão: Ganso, no Fluminense, Scarpa, no Palmeiras, e Arrascaeta, no Flamengo. O brilho da lucidez desses três atletas compensa qualquer desencanto.

A fluidez com que o Ganso desliza faz jus ao apelido. Ele transforma o campo numa lagoa e a si mesmo em um cisne. A falta cobrada pelo Scarpa no jogo do Palmeiras contra o Atlético, em Belo Horizonte, foi uma preciosidade.

Por fim, o passe de Arrascaeta para a finalização de Pedro, na vitória do Flamengo no jogo de volta contra o Corinthians, foi uma obra-prima digna de ser repetida à exaustão. O uruguaio está em “estado de graça”.

E o melhor de toda essa história é que os três, juntos, não pesam sequer um dos brutamontes fabricados às dezenas. Sem deixar de considerar que a força é um atributo importante no futebol, seguirei repetindo: a arte vem em primeiro lugar.

Ficha Técnica

O Futebol Brasileiro nas Ciências Sociais. Sérgio Settani Giglio e Marcelo Weishaupt Proni (Orgs.). Editora Unicamp (800 págs., 88 reais). •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1221 DE CARTACAPITAL, EM 17 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Em campo, os acadêmicos “

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

Leia essa matéria gratuitamente

Tenha acesso a conteúdos exclusivos, faça parte da newsletter gratuita de CartaCapital, salve suas matérias e artigos favoritos para ler quando quiser e leia esta matéria na integra. Cadastre-se!

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar