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Opinião

Em busca de um ponto final

“Cativeiro sem fim”, de Eduardo Reina, retira do calabouço da história bebês, crianças e adolescentes sequestrados pela ditadura brasileira

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Durante vinte anos, o jornalista Eduardo Reina percorreu uma rota cheia de falsas pistas. O típico caminho daqueles que, frequentemente e de modo independente, restituem a indesejável – porém necessária – memória coletiva brasileira. Chegou a dezenove pessoas sequestradas pela ditadura no Brasil (1964/1985), a maior parte delas – onze, mais precisamente – durante o episódio que ficou conhecido como guerrilha do Araguaia.

Do silêncio espesso que permeou o extermínio daqueles que tentaram fazer uma guerrilha popular de resistência ao regime, entre 1972 e 1974, à tagarelice insuflada por câmeras e aparatos tecnológicos de fácil acesso, nos anos 2000, algo, até a publicação de Cativeiro Sem Fim, jamais havia se alterado de modo substancial: o modo como nossas narrativas tratam os chamados camponeses do Araguaia. Pela primeira vez, essas pessoas ganham, simultaneamente, nome completo, circunstância e história. Pela primeira vez não estão em posição coadjuvante em relação a “heróis”, “mártires” ou “bandidos”.

Juracy Bezerra de Oliveira é um desses tardios protagonistas. Foi sequestrado ao ser confundido com Giovanni, filho de Osvaldão, o Osvaldo Orlando da Costa, um dos primeiros militantes do PCdoB a ir para o sudeste do Pará fazer o trabalho de base do partido. A confusão, contada em seus pormenores na obra, acontece porque as mães de um e de outro se chamavam Maria, eram brancas e tinham os olhos claros. Na sanha por capturar o filho do mais perigoso militante, segundo a crença militar, Juracy acabou sequestrado, aos sete anos de idade, levado para Fortaleza e envolvido numa trama de fazer inveja à ficção. Sequestraram também seu irmão, Miracy, desaparecido até hoje. Juracy, é bom lembrar, é reconhecido pelo Estado Brasileiro através da lei número 10.559, de 2002, como vítima do regime de exceção.

E Giovanni? O seu sequestro envolve outro equívoco. Sua irmã biológica por parte de mãe, Yeda, a primogênita, foi capturada na mesma operação. Quem conta é Antônio Viana da Conceição, o irmão que, à época, contava seis anos: o barraco onde morava com a mãe, Yeda, Giovanni e a caçula, no município de Araguaína, Tocantins, foi invadido por militares armados. Os disparos em sua mãe foram fatais e a deixaram morta, enquanto a caçula, Carlânia, de 6 meses, era abandonada no local. A cena é transcrita por Reina a partir do testemunho de Antônio, e em momento algum nos oferece uma narração apelativa. Aliás, um dos grandes méritos de Cativeiro Sem Fim, entre muitos, é que sua narrativa não se oferece à exploração da dor, da pieguice ou da polêmica.

Para quem acha isso tudo pesado demais, um alento. Se a morte e o desaparecimento estão presentes em todas as histórias narradas no livro, elas também trazem um conteúdo de superação. Afinal, tratam-se de pessoas que tinham tudo para sucumbirem diante da tragédia criminosa e da solidão de seus traumas pessoais, mas que chegaram até aqui e hoje ajudam a reconstruir a história coletiva. Não é pouco.

Iracema, por exemplo, é uma mulher que foi torturada e presa juntamente com sua mãe, quando tinha 10 anos de idade. Lúcia Emília Carvalho de Araújo era atuante no Movimento de Cultura Popular (MCP) e nas Ligas Camponesas, foi presa pelo menos cincos vezes, até desaparecer, ainda em 1964, após uma invasão de agentes militares a sua casa, no Recife. Iracema sobreviveu porque obedeceu à ordem de Lúcia, que, na iminência do assalto, ordenou que fugisse (a menina pulou o muro de casa).

Lia Cecília, Rosângela, as crianças indígenas Marãiwatsédé e outros de quem até o nome permanece desconhecido, são personagens que re-enquadram o nosso olhar sobre o período ditatorial. O foco não está todo na repressão, embora não a minimize em momento algum. O autor toca em temas-tabus, como o relacionamento amoroso entre militantes e camponeses, proibido pelo partido (PCdoB); a naturalização da adoção ilegal, até hoje praticada; a escravização e o extermínio de indígenas que, assim como o dito homem civilizado, conheceram a dor de terem seus filhos arrancados de si à força. A relação das prisões, torturas, desaparecimentos, mortes e sequestros com a corrupção civil e militar não fica de fora. Os crimes de Estado aparecem como aquilo que são: atos submetidos a uma engenhosa estrutura de poder político e ideológico, tendo como fim a sustentação do modelo econômico da exploração extrativista e o benefício de uma elite oligárquica. Reina nos lembra que é neste período, em vinculação direta com os sequestros de indígenas, que surge o maior latifúndio do mundo, com aproximadamente 647 mil hectares.

Não se trata de um livro-denúncia. Ou não se trata somente de um livro-denúncia. Cativeiro sem Fim é uma obra conectora. Os relatos mesclam-se à revisão da bibliografia sobre o tema: o autor se volta aos pesquisadores essenciais não para apontar a falta ou o erro, mas para mostrar ao leitor uma visão em perspectiva, ampla e contextualizada.

Evidentemente, a eterna dívida do Estado brasileiro para com a verdade e a justiça, permanece um assunto que precisa ser superado. Enquanto isso não ocorre, o humano, palavra que de tão repetida perdeu seu valor de dizer e de ser, reencontra seu sentido nesse livro que é um ato de coragem e de generosidade com a história, o jornalismo e a vida.

Cativeiro Sem Fim, 2019

Alameda Editorial

Instituto Vladimir Herzog

302 páginas

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