Giorgio Romano Schutte

Opinião

Em busca de um futuro soberano

Até quando o Brasil vai relegar ao capital estrangeiro a prerrogativa de seu próprio desenvolvimento?

O simples fato de ter sido produzido no Brasil torna o Fusca um carro nacional?
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Costumo explicar para os meus alunos que cheguei ao Brasil quando o então presidente Fernando Collor abriu as fronteiras, juntamente com os Ladas. Por coincidência, tinha visitado a grande fábrica automobilística em Togliattigrad, na Rússia, e sabia que essa não seria a anunciada solução para o criticado atraso do parque automotriz brasileiro. Vim para o Brasil há 30 anos, para trabalhar com o movimento sindical, com pesquisa e formação sobre a atuação das empresas multinacionais e as cadeias internacionais de produção. O que era para ser uma temporada tornou-se um projeto de vida, com direito a naturalização e filhos nascidos e criados em solo brasileiro. Pela minha formação e experiência de trabalho, o tema da inserção internacional do Brasil esteve sempre presente. O mundo está no Brasil e o Brasil teria de estar no mundo.

As duas coisas que me intrigaram ao chegar aqui foram chamar o Fusquinha de “carro nacional” e a separação em qualquer cardápio entre “nacional” e “importado”. Vamos ficar na primeira questão. O carro é produzido aqui, logo faria sentido chamar de nacional? Tentei argumentar que não. As decisões sobre investimento, tipo de tecnologia ou remessa de lucro são tomadas lá fora, levando em consideração a estratégia da empresa. Isso pode favorecer o Brasil, mas não necessariamente.

GIORGIO ROMANO SCHUTTE:­Ítalo-holandês nacionalizado brasileiro. Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Amsterdam e doutor em Sociologia pela USP, é professor associado da UFABC e membro do Observatório da Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil (Opeb).

É verdade que Juscelino Kubitschek fez uma rendição negociada. O Brasil não iria, como o Japão ou a Coreia do Sul, ter suas próprias montadoras, mas as montadoras convidadas teriam de comprar suas peças no Brasil. E isso gerou um parque de autopeças, este, sim, verdadeiramente nacional, que empregava, em seu auge, o triplo de trabalhadores que as montadoras. Era uma política de conteúdo local aceita pelas montadoras em troca de acesso privilegiado ao mercado nacional. O México, por exemplo, não fez isso, e chegou a ter uma balança comercial negativa no setor automobilístico por causa das importações de autopeças dos EUA.

Qual a vantagem ou desvantagem de um controle nacional? Uma boa discussão, mas então veio Fernando Henrique Cardoso e resolveu-se que não há diferenças, é tudo globalizado mesmo. Era preciso aumentar a presença de capital internacional para que o País pudesse recuperar o atraso. E, se como havia desconfiança devido à memória recente da alta inflação, moratória e outros que tais, não seria o caso de pedir contrapartidas. Inclusive, tínhamos de oferecer iscas atrativas: os ativos estatais a preço de banana. Senão, o pessoal não vem, ainda mais porque havia uma corrida internacional para atrair esses investimentos. Logo, em um concurso de beleza, não cabe complicar a vida. Há de se agradecer que o capital internacional ainda escolha o Brasil para investir. E, surpresa, deu certo, o Brasil começou, na segunda metade da década de 1990, a atrair investimentos de multinacionais, sobretudo nos setores de serviço.

Com o poder de compra do SUS, o País tem condições de barganhar transferência de tecnologia para cá

Na década seguinte, o Brasil reposicionou-se no mundo. Sobretudo, no segundo governo de Lula, o País começou a ser visto não mais como parte dos problemas, mas como parte das soluções no planeta. A consistente e espetacular diminuição do desmatamento foi um exemplo disso, os êxitos no combate à fome e à pobreza absoluta, outros. A combinação de riquezas naturais, acrescentadas com as reservas extraordinárias do pré-sal, estabilidade política e regulatória, e um poder de compra em expansão provocou um aumento expressivo dos investimentos internacionais, não só da Europa, EUA e Japão, mas também da China. Curiosamente, esse interesse não diminuiu com os problemas econômicos e políticos em meados da década de 2010. O que pouco se comenta é que o Brasil se tornou um dos principais destinos para as multinacionais. Na média, entre os cinco principais países desde o fim dos anos 2000.

Quando cheguei ao Brasil há 30 anos, esses investimentos eram de 1 bilhão de dólares. Considerando a inflação do dólar, seria equivalente a cerca de 2,1 bilhões hoje. Atualmente, os valores registrados são de outra ordem: em média, de 60 bilhões por ano. Ou seja, faz muitos anos que o Brasil está entre as prioridades das multinacionais, não obstante a insistência dos liberais em argumentar que é preciso primeiro melhorar o ambiente de investimentos para atrair inversões produtivas internacionais. E ainda havia o polêmico levantamento comparativo anual do Banco Mundial Doing Business, a mostrar, desde 2002, que o Brasil não seria um bom lugar para se investir.

ATÉ 2014, O BRASIL ERA O QUARTO MAIOR MERCADO CONSUMIDOR DE AUTOMÓVEIS. NÃO ERA UM TRUNFO PARA PACTUAR INVESTIMENTOS EM TECNOLOGIA?

Há de se perguntar qual interesse, mesmo no período de baixo crescimento dos últimos anos de Dilma Rousseff, que provocava tanta desconfiança no mercado. Curiosamente, também na esquerda há a ideia de que o Brasil não seria mais atrativo. O que se esquece de considerar é que as multinacionais comparam o País com outros potenciais destinos em uma perspectiva de longo prazo. Para entender esse fenômeno, deve-se levar em conta a abundante oferta de capitais para investimentos e os recursos estratégicos, o tamanho do mercado interno e outras vantagens competitivas. Isso significa que talvez o Brasil tenha uma margem de negociação não explorada.

Escutei muitas vezes o argumento dos liberais de que o segredo da China em comparação com o Brasil seria que o primeiro país se abriu, e o segundo permaneceu fechado. Mas isso pode se referir somente ao comércio, não às multinacionais. Pelo contrário, pesquisa do Ipea de alguns anos atrás mostrou que o Brasil é o país com maior penetração de multinacionais entre os países dos BRICS. Aqui, grande parte dos setores de ponta é controlada por multinacionais. Mas há, sim, uma diferença entre o acolhimento dessas empresas pela China e pelo Brasil, sobretudo a partir dos anos 1990. No caso da China, a abertura para as multinacionais foi sempre pensada como parte da estratégia de gerar uma base industrial-tecnológica endógena com soberania decisória.

A CPI perdeu a chance de perguntar por que o Brasil não produziu sua própria vacina

Em uma visão liberal, a simples abertura garante um processo virtuoso de ­desenvolvimento. Mas não é isso que países como México e Brasil testemunham. Ao final, por que uma empresa multinacional alemã vai investir em capacidade tecnológica no Brasil se tem instalações de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) na própria Alemanha ou nos EUA? O que a China conseguiu fazer é subordinar a longo prazo esses investimentos a objetivos de desenvolvimento definidos internamente, gerando capacidade tecnológica endógena. O governo dos EUA e a União Europeia reclamam de transferência tecnológica forçada, mas é uma negociação. O que as empresas ganham hoje é acesso a um mercado grande e dinâmico. No fundo, a China conseguiu fazer o que Celso Furtado queria que o Brasil fizesse: “Devemos ter um estatuto legal que discipline a ação do capital estrangeiro, subordinando-o aos objetivos do desenvolvimento econômico e da independência política.”

O autor considerava que um país não deve relegar ao capital estrangeiro a prerrogativa de seu desenvolvimento, uma vez que “os mercados internacionais tendem a ser controlados por grupos de empresas, cartelizados em graus diversos”. Há ainda outra perna: é preciso ter empresas e centros de pesquisa nacionais como agentes dessa capacidade industrial tecnológica endógena. Desenvolver centros decisórios dentro do País. Se é verdade que o Brasil não é comparável ao mercado pujante da China, tampouco é verdade que é um mercado irrelevante. Desde o segundo governo Lula até 2014, o Brasil era o quarto maior mercado consumidor de automóveis, ou seja, se vendia mais carros aqui do que na Alemanha, ficando somente atrás de EUA, China e Japão. Isso não daria ao País uma margem de negociação maior para pactuar investimentos em tecnologia?

A INSISTÊNCIA NA SOBERANIA TECNOLÓGICA ERA CONSIDERADA COISA DA ESQUERDA JURÁSSICA. A PANDEMIA ABALOU AS CERTEZAS LIBERAIS

O Brasil tentou, no fim do governo Lula e no primeiro governo Dilma, avançar nesse caminho. Os três exemplos mais importantes: o novo marco regulatório do pré-sal, a política para o Complexo Econômico-Industrial da Saúde e o programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da ­Cadeia Produtiva de Veículos Automotores ­(Inovar-Auto), que buscavam negociar acesso ao mercado interno em troca de investimento em capacidade tecnológica. Infelizmente, essas políticas foram alvo de críticas. E, após a derrubada de Dilma, foram rapidamente desmontadas.

Até pouco tempo atrás, a insistência na importância estratégica da soberania tecnológica era considerada coisa do passado, pensamento de uma esquerda jurássica. Curiosamente, a competição com a China e a experiência com a pandemia mudaram a narrativa nos países que originaram o pensamento neoliberal. Programas governamentais na Europa e nos EUA focam justamente em recuperar uma base de manufatura, com investimento maciço para não perder o bonde da quarta-revolução industrial-tecnológica que, entre outros pontos, engloba as respostas ao desafio da crise climática.

A petrolífera foi reduzida à exploração do pré-sal e à geração de lucro para os seus acionistas

Assim, quando o governo Dilma lançou o Inovar-Auto, a União Europeia denunciou o programa na Organização Mundial do Comércio como gerador de concorrência desleal. Hoje, parte do plano trilionário da UE de recuperação inclui o financiamento de pesquisas para que o setor automotivo faça a transição para o transporte de baixa ou zero emissão de carbono. Enquanto isso, o Brasil de Michel Temer e Jair Bolsonaro fechou um acordo com o bloco europeu, no âmbito do Mercosul, a prever importação de carros com alíquotas zero e sem cotas de importação a médio prazo. Por que então investir na revolução automobilística no Brasil?

Já a acertada política dos governos Lula e Dilma para o complexo industrial de saúde, que previa mobilizar o poder de compra do SUS para atrair investimentos com garantia de transferência tecnológica para empresas nacionais, foi descontinuada. Tivesse o Brasil insistido nessa política na década de 2010, talvez a pergunta certa da CPI da Covid fosse: “Por que o Brasil não desenvolveu a sua própria vacina?”

EMPRESA LÍDER NO OFFSHORE, A PETROBRAS TORNOU-SE UM ATIVO DESCARTÁVEL NAS MÃOS DE PAULO GUEDES

Enquanto começava a prevalecer mundo afora uma revalorização de empresas e centros de pesquisas nacionais, o Brasil de Temer e Bolsonaro apostou no liberalismo dos anos 1990. Exemplo gritante é o desmonte da Petrobras, justamente uma empresa líder no offshore, a fronteira tecnológica da exploração de petróleo. Um dos poucos exemplos onde o Brasil é líder tecnológico. O conhecimento da exploração do fundo do mar poderia até ser aproveitado no futuro para outros fins além do petróleo. A empresa poderia diversificar seus investimentos em bioenergia, hidrogênio, energia solar e eólica. Mas, não, a companhia foi reduzida para servir somente à exploração do pré-sal e gerar dinheiro para seus acionistas – dois terços privados, dos quais grande parte opera na Bolsa de Nova York. Ou seja, transformada em descartável. E, se tem prazo de validade, melhor privatizar logo, argumenta cinicamente o ministro de Economia.

Está na hora de alterar as políticas. Não será fácil, porque muito foi desmantelado desde 2016. Falta ainda uma visão de país por parte da grande parte das elites econômicas. Mas há duas esperanças: uma vontade popular de mudar o rumo e as novas práticas nos países do Norte em torno da disputa pela quarta revolução industrial-tecnológica, com o enfrentamento das crises climáticas que desmitificam a crença liberal dos anos 1990. Além disso, o Brasil tem um trunfo extraordinário: uma liderança popular com vontade de resgatar a soberania do País em prol do desenvolvimento. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1189 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE DEZEMBRO DE 2021.

CRÉDITOS DA PÁGINA: PEDRO VILELA/GETTY IMAGES/AFP E GEERT-JAN KUYPERS – ALESSANDRO DANTAS/PT NO SENADO E LU YE/XINHUA NEWS/AFP – AGÊNCIA PETROBRAS

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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