Patrícia Valim
[email protected]Professora do departamento de História da Universidade Federal da Bahia.
Cantora não foi respeitada na hora de sua morte por uma pretensa elite intelectual que se comporta como bolsonarista
Antes de mais nada, quero me solidarizar aos familiares de todas as vítimas da tragédia aérea ocorrida na sexta-feira, em 05 de novembro. Quero também confessar que a morte da cantora Marília Mendonça, 26 anos, me afetou de várias maneiras.
Primeiro porque a morte de um bebê, uma criança, uma moça tão jovem e mãe de um filho pequeno é uma tragédia das mais tristes em uma sociedade porque começamos a duvidar daquilo que nos dá a ilusão de infinitude e nos faz humanos: pensar no futuro. Sobre isso, a própria Marília Mendonça cantou: “tô ensaiando a despedida, mesmo tendo outros planos”.
Essa tragédia piora quando se trata da morte de uma moça que, desde 2015, é o maior fenômeno da música popular brasileira, levando milhares de pessoas em seus shows, milhões de pessoas em suas lives e bilhões de visualizações de seus vídeos. Tudo isso fica desesperador quando essa morte trágica ocorre em um momento de pandemia mundial e em um país que voltou a ter 20 milhões de miseráveis, metade da população em situação de insegurança alimentar e mais de 600 mil pessoas mortas pela Covid-19 e pela política genocida de um governo que poderá se reeleger por inércia e colaboracionismo de quem se pensa diferente, mas se comporta igual.
Refiro-me à segunda razão pela qual a morte da cantora Marília Mendonça me afetou tanto. Assim que saiu a notícia de sua morte, importantes historiadores e historiadoras, desses que vão estudar os pobres brasileiros em Paris, chamam de história regional os eventos ocorridos além da ponte-aérea Rio-São Paulo, coordenam áreas na Capes e presidem sociedade científicas ficaram se vangloriando por não saber quem foi Marília Mendonça, a cantora mais conhecida da Música Popular Brasileira. Um deles perguntou: “só eu acabei de conhecer a cantora”? Sem nem mencionar o nome da Marília Mendonça.
As mais de 150 respostas no post constrangeram até os mais brutos dos viventes: um senhor pesquisador respondeu que só conhecia a Marília Pera e a Marília de Dirceu porque não suporta a música sertaneja. Uma senhora pesquisadora, dessas que acham elegante postar fotos de comidas nas redes sociais enquanto as pessoas estão comendo carcaça temperada, afirmou em tom jocoso: “me senti completamente ignorante, uma verdadeira ET. Pedi ajuda aos universitários. A manicure e a empregada que ficaram em choque com a notícia [da morte da cantora Marília Mendonça].
Se alguém apagasse os nomes das respostas, pareceria que estávamos lendo os comentários de um post da extrema-direita bolsonarista: um misto de classismo, cafonice, deslumbre, desumanidade inacreditável e só visto na cena do filme “Bacarau” quando um casal de paulista senta-se à mesa com americanos e se afirmam iguais a eles. Os americanos riram alto e responderam: “vocês não são como nós; jamais serão”. Troque os americanos pelos franceses e teremos a geopolítica que inspira a produção do deslumbre tristes trópicos: no momento em que o país chorava o acidente trágico que matou uma moça e outras cinco pessoas, deixando oito crianças órfãs, alguns historiadores e historiadoras de universidades públicas se sentiram no direito de falar sobre seus gostos musicais.
Pessoas que se dizem de esquerda, republicanas, democráticas, defensoras do legado do Paulo Freire e das liberdades civis ridicularizando as músicas de uma cantora que ainda não tinha sido nem enterrada, exibindo no Facebook o que eles consideram erudição e símbolos de riqueza. Outra senhora escreveu no mesmo post: “só conheço as músicas do Caetano Veloso e do Gilberto Gil”. Nem isso, pois se conhecesse de fato teria ouvido a Marília Mendonça virar “Maravilha Mendonça” na voz linda de Caetano que, assim como Gil, eu e milhões de pessoas, também chorou muito a morte dela.
É bom esclarecer que ninguém é obrigado a gostar das músicas da cantora e desse gênero musical. No entanto, espera-se de quem se pensa tão distinto dos demais alguma compostura e humanidade diante de uma tragédia como a que vimos na última sexta-feira. Uma colega querida escreveu em sua rede social: para que serve o título doutorado nesse país com a metade da população em situação de insegurança alimentar? “Não pode ser para dar carteirada de erudito cansado que só deixa a torre de marfim para almoçar no restaurante chamado senzala”. Pra que serve?
A querida e combativa historiadora Mariana Esteves/UFMS sugere um exercício simples, mas não simplório, por meio de duas perguntas: “eu ficaria expondo minha ignorância ou desafeto musical se a artista em questão fosse erudita”? Conhecer os eruditos e não conhecer os tão populares diz algo sobre nosso lugar social? Isso nos permite entrever clivagem de classes, de cultura e distinção que poderiam ser reeducadas nesses momentos com a simples etiqueta de ‘ficar calado’ e aprender”.
Para nós, historiadoras e historiadores que militamos pela democratização do acesso à graduação e à pós-graduação, e não usamos o nosso doutorado para ser poser nas redes sociais com nossos alunxs, aquele bom e velho exercício que a mãe ensinava sobre “se colocar no lugar dos outros” foi reprovado na nossa comunidade. Isso tem a ver com a terceira e última razão pela qual a morte da Marília Mendonça tem sido muito dolorida.
Um historiador chamado Gustavo Alonso escreveu o obituário à Marília Mendonça, no jornal Folha de São Paulo, que já entrou para os anais do jornalismo brasileiro como o obituário mais desumano e misógino de todos os tempos. Nele, o historiador mata simbolicamente a cantora novamente ao desqualifica-la como cantora e sobrepor sua forma física à sua música e à sua militância. Chorei e vomitei quando acabei de ler esse horror, sobretudo porque essa gente tem por hábito desprezar quem não conhece.
Marília Mendonça expressou seu #EleNão publicamente e, entre várias ajudas, pediu sigilo à organização antirracista “Pretitudes” ao beneficiar 225 jovens negros da periferia com o pagamento de pré-vestibular e inscrição para o ENEM/2020 para que eles entrassem na universidade pública, um dos nossos maiores patrimônios. A mesma universidade pública que tem entre seus quadros pessoas que tripudiaram sua morte ao desqualificarem suas músicas no lugar de aprender com ela e percorrer todos os cantos desse país para conhecê-lo.
Para essa gente cafona e desumana, Marília Mendonça não mereceu respeito nem na hora de sua morte. Depois não sabemos porque estamos onde estamos. Uma “elite” intelectual dessas jamais conseguirá dialogar com a maior parcela da população. Tristeza sem fim.
Quantas vezes o patriarcado aqui nos tristes trópicos precisa matar a mesma mulher para satisfazer o ódio às dos misóginos e o vazio epistemológico dos pedantes?
O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.
Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.
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