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Eleição em Portugal teve dois vencedores: o presidente e a extrema-direita

No final, mais de 10% dos portugueses deram a André Ventura o seu voto. Ficou talvez mais clara a miserável história do fascismo português

André Ventura, o candidato da ultradireita à presidência em Portugal (Foto: PEDRO ROCHA/AFP)
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Esclareçamos de entrada, e em beneficio dos leitores brasileiros que não estão familiarizados com o sistema político português, que o Presidente da República Portuguesa não governa nem detém poderes executivos. Embora escolhido por sufrágio universal, ele tem por funções principais representar a República, garantir a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas. O Governo, escolhido em eleições legislativas, responde politicamente perante a Assembleia da República e não perante o Presidente.

Tudo isto para dizer que nas eleições presidenciais do domingo passado em Portugal não estava em causa nem a escolha de um governo nem o rumo da governação. Nestas eleições, o atual Presidente, que é oriundo politicamente da centro-direita, recandidatava-se a um segundo mandato, contando com o apoio da direita democrática, mas também com o importante apoio do primeiro-ministro e dos principais ministros do atual governo, que é socialista. Tudo convidava a prever uma eleição sem história.

De certa forma, assim foi. Mas só de certa forma. Como era previsível, o Presidente ganhou confortavelmente as eleições com um pouco mais de sessenta por cento dos votos, confirmando a regra de que um Presidente eleito nunca perdeu uma reeleição para um segundo mandato. Todavia, a noite eleitoral mudou todo o cenário político português. Pela primeira vez na democracia portuguesa, um candidato de extrema-direita atingiu os dois dígitos de percentagem eleitoral, 11,9 por cento, para ser exato. Eis a novidade política. Eis o facto político da noite.

A análise objetiva dos resultados eleitorais  impõe que se reconheça, por mais que custe, e custa muito, que nessa noite houve dois vencedores. Um deles foi o Presidente que ganhou a eleição; o outro foi a extrema-direita, que ganhou um espaço e uma força que nunca teve em mais de quarenta e cinco anos de vida democrática.

Para a esquerda, a noite eleitoral foi sombria e triste

A campanha passou-se na televisão e consistiu, essencialmente, em debates entre todos os candidatos. O candidato da extrema-direita transformou-a num ambiente de guerra de todos contra todos. Um festival de bestialidade e brejeirice. Com a devida licença e sem ofensa dos restantes candidatos decentes, de repente parecíamos arrastados para o ambiente do realismo italiano de Ettore Scola – “ brutti, sporchi e cattivi” .

O País pôde então ver um candidato declarar abertamente que deseja discriminar os cidadãos portugueses de etnia cigana. O País pôde vê-lo desafiar abertamente os consensos democráticos básicos de solidariedade social, insultando os cidadãos que recebem algum tipo de ajuda estatal, tratando–os como “gente que vive à nossa custa, à custa de quem trabalha”. O País pôde vê-lo, também, e em direto, defender a prisão perpétua e a castração química para condenados por pedofilia. O País viu-o defender uma ditadura das “pessoas de bem” e um País onde os “portugueses de bem sejam reconhecidos”.

E, para quem pensava que já tinha visto tudo, os debates puderam ainda mostrar o candidato confirmar que pediu a uma deputada nacional para “ir para o seu País”, dizer a uma candidata a Presidente que  “não era bem-vinda a Portugal “ e fazer comentários ordinários sobre o batom vermelho de uma outra adversária num debate eleitoral.

Talvez a direita portuguesa possa aprender com a história brasileira recente e considerar o preço pago pelo apoio ao golpe parlamentar que derrubou Dilma  

No final, mais de dez por cento dos portugueses deram-lhe o seu voto. No final, ficou talvez mais clara a miserável história do fascismo português. No final, o País ficou a conhecer-se melhor.

Este resultado permite, pelo menos, acabar com o deprimente debate sobre a melhor forma de lidar com a extrema-direita. Há já alguns anos que alguns defendiam que se ignorasse o fenômeno, pretendendo que a melhor estratégia para não lhe dar centralidade ou protagonismo político era fingir que não existia e que nada de novo estava a ser dito no espaço público. Enganaram-se redondamente. Agora, acabou. Já ninguém pode dizer que não está a ouvir. Mais de dez por cento dos portugueses acabou de votar neles.

E por favor poupem-nos ao habitual masoquismo democrático. A responsabilidade deste resultado nada tem a ver com a democracia, mas com os inimigos da democracia.  Não é a democracia que tem que mudar, são eles que tem que mudar. A democracia não prescinde da inclusão social, não prescinde dos direitos individuais, não prescinde das limitações ao poder do Estado, não prescinde da Constituição. Aqui, no terreno do que é básico, não há compromisso ou transigência – e nas épocas históricas em que essa negociação foi feita sabemos muito bem como acabou. 

Para a esquerda, a noite eleitoral foi sombria e triste. E não apenas pela expressiva votação da extrema-direita. O partido socialista, o grande partido popular da esquerda, resolveu, pela segunda vez consecutiva, não apresentar candidato próprio às eleições presidenciais. Esta posição expressa uma mudança de cultura política no sentido em que o partido deixa de considerar ser sua obrigação democrática apresentar candidato que possa dar expressão política ao seu eleitorado ou como se o fato de apresentar um candidato da sua área política numas eleições presidenciais, comprometesse a cooperação política com um Presidente que não é da sua área política. É como se o seu objetivo fosse despolitizar as eleições ou expulsar a política das escolhas fundamentais do povo português.

 

Desta forma, os socialistas são empurrados para uma certa cultura tática na qual esta subentendido que o partido só deve disputar eleições quando tem a certeza de ganhar e em que a sua manutenção como partido de governo é a única coisa que verdadeiramente interessa. Quanto aos outros dois partidos de esquerda. a noite foi ainda pior, ambos com percentagens abaixo dos cinco por cento (o resultado foi particularmente injusto para o candidato comunista, que fez uma excelente campanha fundada na sua leitura da Constituição e no que ela impõe à ação e função do Presidente).

Posso estar enganado mas esta tática socialista deixará um rasto de ressentimento à esquerda cujas consequências, por enquanto, são ainda imprevisíveis.

No entanto, no meu ponto de vista, o mais sério problema destes resultados eleitorais coloca-se à direita democrática. Aí, sim, há um dilema que tem de ser enfrentado. A ideia de que um qualquer tipo de cooperação ou de diálogo fará regressar o eleitorado aos partidos democráticos parece-me profundamente ingênua.

À direita não resta outro caminho que não seja a intransigência democrática (no sentido de que a democracia não autoriza a negociação dos direitos individuais nem a proteção constitucional das minorias). Qualquer ambiguidade será fatal, pois não só deixará livre o terreno do centro democrático, como afetará o seu próprio compromisso com o sistema democrático, que passará a ser visto como contingente. Para além disso, qualquer hesitação alimentará igualmente a ideia de que é possível construir uma alternativa política à esquerda votando na extrema-direita.

Nenhum destes erros a direita poderá cometer. Mas a tentação existe, e talvez aqui, neste ponto em particular, a direita portuguesa possa aprender com a história brasileira recente e considerar o preço que a direita que se dizia democrática pagou quando decidiu aliar-se à extrema-direita para apoiar o golpe parlamentar que derrubou a Presidente Dilma Rousseff. 

O que ficou desse golpe é o que vemos agora no Brasil – um tempo de brutalidade, de tempo de absurdo, um tempo de tragédia.

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