Leonardo Avritzer

Coordenador do Observatório das Eleições. É professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Eliara Santana

Pesquisadora Associada do CLE/Unicamp e uma das criadoras do Observatório da Desinformação.

Opinião

Eleição 2022 e a reconstrução democrática

A eleição de hoje não significa o fim do processo de erosão democrática, mas significa a retomada de um processo de pactuação que pode recolocar a democracia brasileira no lugar. Não é pouco

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
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A eleição de 2022 representou a continuidade do processo de erosão democrática do Brasil que se iniciou em 2016, com o processo de impeachment contra a então presidente Dilma Rousseff. Três características principais desse processo se acentuaram no período eleitoral. A primeira delas refere-se a uma falta absoluta de regras por parte da campanha do presidente Bolsonaro, com abusos inéditos do poder econômico. A segunda se expressa em uma forte diminuição do papel do Congresso, seja como elaborador de leis, seja como chancelador de políticas públicas abertas e sua transformação num instrumento subordinado do Poder Executivo, a partir de um processo secreto de distribuição de emendas (o chamado orçamento secreto), que desorganiza e despolitiza as políticas públicas. E a terceira característica diz respeito a um enorme conflito entre o Executivo e o Supremo Tribunal Federal, desde que o STF procurou manter uma autonomia em relação ao Poder Executivo, autonomia essa não aceita pelo atual presidente.

Portanto, foi em torno dessas questões que se desenvolveu um processo eleitoral que teve três características principais: abusos econômicos, com uma utilização sem precedentes de recursos financeiros para desestabilizar e influenciar as eleições; uma divisão do país tanto em setores que apoiam Bolsonaro quanto por aqueles que não apoiam, como também entre regiões, levando a um forte processo de divisão e desagregação social; e uma ampliação do ecossistema de desinformação, que impede o eleitor se tomar sua decisão com base em fatos e informações reais.

Abusos econômicos sem precedentes

A utilização da máquina pública e os abusos econômicos praticados pelo governo Bolsonaro são inéditos na história recente do Brasil. Eles passam não apenas pela declaração do Estado de emergência para o pagamento de auxílio emergencial, como também pela liberação de empréstimo consignado para quem recebe Auxílio Brasil, assim como pela liberação de auxílios para caminhoneiros e taxistas, terminando nos fortes prejuízos causados aos estados a partir da mudança de tributação de combustíveis. Todos esses elementos anunciam uma política de uso do Estado que tem de ter fim ainda no segundo turno desta eleição. Caso Bolsonaro, contrariando as pesquisas, ganhe as eleições, o que ele implantará num futuro governo será uma lógica dual de fortes cortes no salário mínimo e nos benefícios sociais, em anos normais, associados a fortes benefícios clientelistas em anos eleitorais. Esse novo e pernicioso ciclo eleitoral que Bolsonaro pretende implantar precisa ter um fim neste domingo, e um novo ciclo virtuoso precisa implicar o restabelecimento de uma política orçamentária transparente e no protagonismo do Executivo na elaboração de políticas públicas.

Bolsonaro declarou guerra a uma estrutura de divisão de poderes com fortes prerrogativas por parte do poder judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal, que adquiriu, desde 1988, protagonismo tanto em questões penais quanto como corte revisora. Esse protagonismo se acentuou no governo Bolsonaro e foi desafiado pelo presidente com forte ameaças, que não são compatíveis com a ordem democrática. Coube à Corte, a partir da completa cooptação da Câmara na gestão Artur Lira, o papel de último bastião da defesa da democracia. Foi nesse papel que Alexandre de Moraes assumiu um protagonismo inédito ao retirar do ar centenas de perfis e canais do YouTube que faziam parte do que hoje denominamos de “ecossistema de desinformação”. Evidentemente que esse papel do STF e do TSE de se assumirem como últimos bastiões da democracia foram papeis importantes, mas é preciso ter em conta que uma relação de complementariedade entre os poderes é necessária para a restauração da democracia e da governabilidade e precisa fazer parte das ações iniciais do próximo governo.

O ecossistema de desinformação

Desde as eleições de 2018, o Brasil se viu mergulhado num esquema avassalador de produção e disseminação de notícias falsas. A partir daquele momento, vimos que se consolidava um esquema deliberado, intencional e profissional de produção e disseminação de conteúdo falso, com um alcance sistêmico e influências marcantes no cenário macropolítico. É o que chamamos aqui de um ecossistema de desinformação, com uma estrutura muito bem delineada para operacionalizar as produções de conteúdo e a disseminação pelas várias plataformas e redes e com características bem marcantes: aporte e sustentação do poder público e de setores do empresariado, grande financiamento, produção intencional e profissional de conteúdo falso envolvendo diversos atores (por exemplo, sites com estrutura de produção de conteúdo, influenciadores que recebem benesses, representantes do poder público, entre outros) e enorme capilaridade para disseminar o conteúdo criado e as mentiras.

Nas eleições de 2022, esse ecossistema – ligado à campanha bolsonarista e ao gabinete do ódio – funcionou a pleno vapor, com toda intensidade, conseguindo causar enormes prejuízos ao andamento do processo eleitoral, colocando em xeque instituições já consolidadas em sua atuação e processos exitosos, como é o caso do sistema eleitoral brasileiro, propagando ataques a atores institucionais, como ministros do STF e do TSE, colocando em dúvida a eficácia das urnas eletrônicas, agendando pautas inexistentes – como a discussão sobre banheiro unissex –, disseminando inverdades sobre questões ligadas à religião, enfim, apagando o debate público e colocando em cena um cabedal de mentiras.

Podemos até dizer que esse ecossistema, em muitos momentos da vida nacional, operou para estabelecer uma realidade paralela com custos altíssimos para o país. A ação eficaz do TSE, na figura do ministro Alexandre de Moraes, especialmente no segundo turno, contribuiu para estabelecer um certo freio necessário à expansão desse ecossistema. Por outro lado, o reposicionamento da campanha lulista, com foco em ações afirmativas e capturando a agenda do debate, foi também um fator relevante para conter o avanço da disseminação de mentiras.

Por fim, o novo governo Lula que se anuncia no horizonte, caso o resultado previsto pelas pesquisas seja confirmado pelas urnas neste dia 30/10, terá como primeiro papel a restauração da institucionalidade democrática, que foi esgarçada até o limite pelo atual presidente. Reconstruir a democracia implica abolir o orçamento secreto, restaurar a transparência das políticas públicas e realizar um novo pacto de governabilidade com o STF. Por meio desses atos, um governo Lula poderá iniciar uma ampla restauração de um papel ativo do Estado na diminuição das desigualdades sociais a partir da implementação de políticas públicas transparentes.

Também é relevante, para fazer frente ao ecossistema de desinformação, restaurar a relação entre política e informação, com regulações que não limitem a liberdade de expressão e com ações afirmativas de formação no campo da educação para a mídia. Esse debate tem que fazer parte da agenda do novo governo.

A eleição de hoje não significa o fim do processo de erosão democrática, mas significa a retomada de um processo de pactuação que pode recolocar a democracia brasileira no lugar. Não é pouco, dado o processo sistemático de destruição da sociabilidade democrática pelo qual passamos nos últimos quatro anos.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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