Yasmin Morais

[email protected]

Escritora, jornalista em formação pela Universidade Federal da Bahia com mobilidade acadêmica na Université Toulouse 2 Jean Jaurès, integrante do Centro de Estudo e Pesquisa em Análise do Discurso e Mídia (CEPAD) da UFBA e fundadora do projeto Vulva Negra.

Opinião

Ele vai devorar as suas criancinhas

Como o pânico cristão que foi utilizado por Jair Messias Bolsonaro está prestes a acabar com ele

Foto: EVARISTO SA/AFP
Apoie Siga-nos no

Quando nos debruçamos sobre o estudo do segmento político, é usual que nos deparemos com chavões pragmáticos tais “mais razão, menos emoção” ou clássicas proposições, como “o ser Humano é um animal político”. Entretanto, apesar dos teóricos apontarem para cenários nos quais os macro e micro poderes duelam, em uma batalha discursiva e munida de recursos financeiros, culturais e sociais a fim de realizar a manutenção de suas agendas específicas, o que se torna cada vez menos perceptível são as estratégias finas que vêm sendo empregadas largamente desde séculos passados, mas que encontram fortes ecos no século XXI.

Nos anos 1980, autores como o cientista político francês Raoul Girardet abordavam a importância da estruturação das mitologias políticas para que a população se encontre suscetível aos discursos de unificação do grupo e da luta epopeica do Bem versus o Mal. Pois, a personificação dos ideais arquetípicos do Herói e do Inimigo, sempre se fizeram essenciais na construção das narrativas políticas favoráveis à radicalização.

Em seu livro, Mitos e Mitologias Políticas, o autor discorre sobre a importância da crença em uma suposta “era de ouro”, onde a sociedade teria sido moralizada e seguido os princípios morais da ideologia dominante.

Além disso, o fomento de uma crença cabal nas “grandes conspirações” que estariam sendo arquitetadas pelo Inimigo, se faz necessário a fim de intensificar o sentimento de radicalização que, mais à frente, servirá para justificar as atrocidades propostas por aqueles que desejam se valer dessas estratégias de manipulação.

Dentre os mais úteis artifícios, o pânico cristão, estratégia presente já nos tempos da Baixa Idade Média, mas que recebeu uma nova roupagem nos movimentos neopentecostais norte-americanos, aterrissou no Brasil com o avanço evangélico e a naturalização de teorias da conspiração as mais variadas possíveis, mas que sempre pendem para cenários específicos: a depravação moral da sociedade secular, a destruição da família e a corrupção das criancinhas.

Graças ao pânico cristão, que diferente do pânico moral, realiza uma abordagem mais profundamente religiosa e “diabólica”, inúmeras religiões com pensamento de seita blindaram seus fiéis – ou vítimas – das críticas feitas aos reais interesses daqueles que utilizam essa estratégia.

A intenção dos que empregam este gênero de manipulação, tende a ser criar uma versão distorcida da realidade na qual o Diabo, ou outra entidade furtiva e satânica, estaria arquitetando planos infalíveis dos quais somente enviados específicos de Deus, ou de outra figura positiva e messiânica, poderiam proteger não apenas os membros da seita, como também toda a humanidade da depravação moral.

Ubiracir Hagermann, mais conhecido nas mídias sociais como Senhorita Bira, foi um dos recentes precursores na abordagem dessa temática para o grande público através de seu canal no Youtube, intitulado O Algoritmo da Imagem. Sobre a estratégia política, Bira afirma:

o pânico cristão continua vivo e está fazendo grande estrago. Enquanto nós estamos perdidos em discursões seculares, sem propósito material na internet, há setores da sociedade que estão cada vez mais preparados para nos dominar”.

Não coincidentemente, desde o início dos seus planos de candidatura em 2017, Jair Bolsonaro (PL), em companhia daqueles que possuíam interesses em sua eleição, se valeram dessa narrativa para posicionar a figura do dito Messias como aquele que seria responsável por protagonizar o papel de herói no conto da carochinha do pânico cristão.

Entretanto, nos últimos dias, o retorno de um vídeo publicado em 2017 no qual Jair Bolsonaro participa de uma reunião maçônica, inverteu a narrativa e permitiu que membros da Esquerda pudessem, então, utilizar o pânico cristão contra o candidato.

Vídeo de Bolsonaro em loja maçônica em 2017 viraliza nas redes.

A gravação e as imagens da visita do então presidente às lojas maçônicas e também do seu vice, Hamilton Mourão e sua esposa, Michelle Bolsonaro, caíram no segmento evangélico como uma bomba que demarca o início da “Guerra Santa” no segundo turno das eleições presidenciais. A repercussão negativa do vídeo foi tamanha, ao ponto de representações do cenário evangélico como Silas Malafaia e César Augusto terem de vir à público se manifestar a respeito do ocorrido.

O caso de Jair Messias Bolsonaro no templo maçom nos revela que estamos a viver tempos nos quais a percepção da realidade jamais esteve tão líquida e suscetível aos delírios coletivos e ao pensamento de seita.

A política é um campo de batalhas discursivas, e no discurso, não vence aquele que diz a verdade. Mas sim, aquele que consegue mobilizar as emoções do público e atingir uma apoteose de polêmicas e êxtase teatral. Bolsonaro não perderá as eleições por ser corrupto, misógino, péssimo gestor, emocionalmente instável e perigoso. Mas sim, por “ter parte com Satanás” e frequenta às surdinas os templos dos tão “terríveis” – e julgados no passado por pessoas como Silas Malafaia – maçons. Afinal, estamos no mundo real.

E no mundo real, parte da população não se importa com diplomas ou com dados estatísticos, as pessoas se importam maioritariamente com as suas próprias crenças e aqueles que as controlam, se valem das superstições para sustentar um cenário no qual as consequências de governos desastrosos sejam atribuídas à inimigos externos ou imaginários, ao invés de percebidas como falhas daqueles que manipulam as crenças da população em benefício próprio.

Por isso, em um mundo caótico no qual vivemos uma versão atualizada da Baixa Idade Média, a fala que alguns atribuem à Maquiavel: “os fins justificam os meios”, se converte em uma possibilidade no ramo da estratégia política. Contudo, o limite do uso de tal estratégia pela Esquerda, deve residir na manutenção dos ideais antirracistas, antimisóginos e anti-intolerância religiosa contra os povos indígenas e os povos de terreiro. Afinal, o que já foi averiguado como fato, em muito contribui para a narrativa que se deseja construir.

Se faz necessário muito pragmatismo para seguir as regras do jogo, sem se deixar consumir pelas mesmas mazelas que desejamos expurgar. Não se esqueçam que quando olhamos muito para o abismo, ele nos olha de volta.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo