Fábio Py

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É doutor em teologia pela PUC-RIO e professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais da UENF.

Opinião

Edir, Malafaia e Valdomiro: os cristofascistas que menosprezam o coronavírus

Que esses líderes religiosos sejam responsabilizados, assim como o político genocida que eles sustentam

Edir Macedo e Bolsonaro
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“Santo, santo, santo é o Javé dos exércitos;

a terra toda está cheia da sua glória”

Isaias 6,3


“A soberania é a capacidade de definir

quem importa e quem não importa,

quem é ´descartável` e quem não é.”

Achille Mbembe (2016)


Nas últimas semanas, estamos sendo bombardeados com notícias, informações sobre a saúde, no contexto difícil de expansão da pandemia do coronavírus. No Brasil, a expansão do vírus e da produção de conteúdos ainda é uma nebulosa, porque vem ocorrendo uma polarização na linha de frente do governo atual.

De um lado, a ação do Ministério da Saúde assumindo todos os cuidados mundiais da não circulação e do isolamento social (com a ampliação da gestão dos corpos, biopolítica de Michel Foucault). Do outro lado, assumido de forma retumbante a defesa do mercado, está o presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro.

O presidente notabilizou um discurso no dia 24 de março para a TV brasileira fazendo uma série de indicações em prol dos empresários, dos negócios. Minimizando a pandemia, chamou de apenas uma “gripezinha”, que “mataria apenas a população acima dos 60 anos”, além das pessoas com problemas de saúde como diabetes e pressão alta. Assim, no discurso assume de forma categórica que no seu estado tais populações são descartáveis, podem ser entregues à morte. 

O discurso do presidente cristofascista saiu da ampliação biopolítica do Ministério da Saúde para a crueldade, reconhecendo que fatias da população brasileiras tinham o “direito de morrer” (chamada de necropolítica pelo intelectual nigeriano Achille Mbembe). O vídeo de Bolsonaro reverbou amplamente nos setores das mídias e entre os intelectuais que produzem conteúdos. Percebo que tal “operação necropolítica” de Bolsonaro vem sendo assumida por líderes das grandes estruturas religiosas pentecostais, esses que são umas das arestas básicas da sustentação do governo.

Os líderes pentecostais operadores da necropolitica cristofascista

Percebe-se que existem pelo menos três grandes lideranças pentecostais em apoio ao atual cristofascismo brasileiro. A primeira figura é a do apóstolo Valdomiro Santiago, líder da Igreja Mundial do Poder de Deus, que mesmo nos primeiros dias da quarentena por conta da Covid-19 no Brasil, convocou  os integrantes da sua igreja para que se aglomerassem na sede do seu templo em São Paulo.

A base bíblica para sua convocatória foi o famoso Salmo 91, de unção dos fieis para estarem protegidos de Deus, diante da peste que se alastra. O segundo líder foi mais explícito no incômodo com a Covid-19, o bispo Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD).  Na mesma época do vídeo do Valdomiro, minimizou o medo das pessoas. Afirmou que o temor “não condiz com a realidade” e que a mídia estava causando o caos. Destacou textualmente que o medo supostamente incitado seria “tática de Satanás, Satanás trabalha com o medo, com o pavor, Satanás trabalha com a dúvida. Satanás apavora as pessoas. Quando as pessoas ficam apavoradas, quando as pessoas ficam com medo, quando as pessoas ficam em dúvida, as pessoas ficam fracas, débeis”.

Silas Malafaia e Bolsonaro

O terceiro líder religioso da base cristofascista de Bolsonaro a se posicionar foi o pastor  Silas Malafaia. Ele é o que mais chama a atenção sobre o coronavírus. Gasta tempo falando sobre o tema, com mensagens, discussões e provocando debates. Após o pronunciamento de Bolsonaro do dia 24, gravou um vídeo nas redes sociais reiterando o apoio ao presidente na questão da doença. Retirando a responsabilidade do chefe do Executivo, reiterou a suposta escolha da população entre o adoecimento e o desemprego.

“Estamos numa escolha de Sofia: o que é pior, coronavírus ou caos social? Eu garanto que é caos social. Vai morrer gente, vai… lamentamos profundamente. Meu desejo é que ninguém morra, mas só um dado para vocês, a gripe influenza, no Brasil, em 2009, matou mais de 2 mil pessoas e mais de 58 mil ficaram infectados (…) a minha oração é que Deus guarde pessoas idosas, as pessoas que têm deficiência em seu organismo e que são vulneráveis a isso. Essa que é a questão: se parar tudo, vamos ter uma crise sem precedentes no nosso pais”.

O pastor apoia ponto a ponto o discurso do presidente indicando que seria melhor que parte da população acima de 60 anos, e pessoas com diabetes, hipertensos, possam vir a óbito do que parar o país. Colore o discurso necropolítico de Bolsonaro com tons religiosos, inventando um cristo sacrificial.

Nos estudos bíblicos para sustentar sua posição, já indicou textos como do livro de Josué 1,9. Na passagem, destaca a mensagem divina “Não tenha medo, se forte e corajoso”. Silas Malafaia pregou exigindo coragem dos evangélicos  pois, para ele, Deus não os desampararia.

Criticou, assim, uma suposta covardia daqueles que seriam “medrosos” no contexto da Covid-19. As pregações de Malafaia não foram recebidas sem contestações. Uma das críticas a se destacar se refere a um perfil feminino na rede social. Se dizendo agente de saúde pública, a resposta foi pontual e precisa: “Acredito que o senhor Pr. Malafaia deveria ler outras partes das Sagradas Escrituras, como por exemplo, o livro de Levítico, o cuidado com os leprosos, e a saúde que é parte da santidade, tal como aprendi num estudo bíblico com meu padre na CEB do meu bairro. Rezo e torço para que o senhor mude suas atitudes e ações. Na paz que excede todo entendimento de Jesus”. 

Levítico no contexto das grandes epidemias

A partir da dica da agente de saúde pública ligada ao catolicismo popular das CEBs, gostaria de tencionar a leitura bíblica praticada pelos pastores bases do cristofascismo de Bolsonaro. Assim, chego ao indicado livro bíblico de Levítico, a partir do qual, gostaria de colocar em prática um exercício contextual. Em primeiro lugar, destaco no trecho bíblico, a concepção de peste. Argumento que o contexto de propagação de doenças foi a grande motivação para o surgimento do livro de Levítico, o qual, é formado por leis e por lições vernizados sobre o temor da morte e ao cuidado com a saúde.      

O livro de Levítico relata práticas e leis que tocam diretamente na questão da santidade, logo, seu termo chave no hebraico é qadosh traduzido por: “santo, separado, recolhido, dedicado, saudável”, e seu texto símbolo é “Sedes santos, porque eu, Javé, vosso Deus, sou santo” (Levítico 19,2). O centro de Levítico se encontra entre o capítulo 17 ao 26,  nos quais são apresentados  um código de leis duríssimo editorado no período persa, chamado de “Código da Santidade”. 

Tal código é formado por um conjunto de  normas organizadas pelos sacerdotes do Templo de Jerusalém em uma época de intensa circulação de pessoas em Judá. Naquele contexto, circulavam muitas doenças, sendo a mais séria destas, a lepra, que na atualidade é conhecida como hanseníase. Por não existir um sistema de saúde, de medicina ou de políticas públicas, os sacerdotes compilaram uma série de leis e ensinamentos que tratavam da saúde, alimentação, menstruação, doenças e impurezas. Tudo para preservar a vida da comunidade. Em suma, os sacerdotes de Levítico reuniram os textos da memória de Moisés e Arão porque vivia-se o clima de sofrimento da população que chegava às celebrações.

“Só um dado para vocês, a gripe influenza, no Brasil, em 2009, matou mais de 2 mil pessoas e mais de 58 mil ficaram infectados”, Silas Malafaia

Portanto, o livro é uma de instrução da comunidade de como se comportar diante das novas doenças, especialmente, aos quatro tipos de enfermidades que chegam à região. Tais doenças podem ser comparadas à Covid-19, sendo elas absolutamente contagiosas, levando ao aniquilamento da população que ia semanalmente celebrar no Templo. Os sacerdotes de Levítico ensinavam porque tinham informação. Por terem circulado em outras geografias, tendo acesso a outras vivências, eram, sobretudo, responsáveis. Por esse motivo, por serem lideranças com  responsabilidades sobre o alastramento das pestes sobre o povo,  escrevem repetidamente no capítulo 13: “o sacerdote examinará”.

Lendo o texto bíblico de forma mais direta, separo, outro trecho, o fragmento 22, 4, que diz: “Ninguém da descendência de Arão, que for leproso, ou tiver fluxo, comerá das coisas santas, até que seja limpo”. É um texto relacionado à dimensão social da alimentação. Acima de tudo, comer no Oriente é ato comunitário, logo, pessoas com doentes,  não deveriam comer “coisas santas”, aquelas que faziam parte da comida servida no Templo. O princípio do contágio estava exposto: a alimentação pública com pessoas enfermas infetaria os demais frequentadores das celebrações, portanto, grande parcela da sociedade. Assim, esse é um aspecto central para os tempos de Covid-19, alimentações públicas em época de pestes devem ser evitadas. 

Continuando o exercício, separo outro fragmento de Levítico, o 13,6-7. O trecho destaca diretamente o processo de higienização do povo: “lavará as suas vestes, e rapará todo o seu pelo, e se lavará com água; assim será limpo; e depois entrará no arraial”. Percebe-se que no texto, o simples contato com alguém com suspeita de doença deve ocasionar uma série de medidas, como de lavar suas vestes e raspar todo seu pelo.  Note-se como as medidas a serem praticadas demonstram o nível de exigência dos cuidados com os doentes.

Outro detalhe que merece ser destacado recai sobre as pessoas com suspeita ou com enfermidades. Estas deveriam se manter isoladas dos arraiais e das cidades. Isso está escrito em Levítico 13,4-6a, que a Bíblia de Jerusalém traduz assim: “Mas se sobre a pele há uma mancha branca, se depressão visível da pele, e o pelo não se tornou branco, o sacerdote o isolara o enfermo durante sete dias. No sétimo dia examinara. Se verificar com os próprios olhos que a enfermidade permanecer, sem se alastrar sobre a pele, o isolará durante mais sete dias e o examinara novamente no sétimo dia” (sublinha pelo autor). Nesse texto, existe algo de importante a se destacar: o isolamento do enfermo, ou se quem está sob suspeita. Uma pratica radical, em situações extremas como casos de doenças altamente contagiosas que colocava em risco a comunidade.

Conclusão: ser santo é se cuidar!

Depois da leitura de fragmentos de Levítico, alguns pontos podem ser ditos. Contudo, antes, destaco a importância de ouvir pessoas que estão diariamente na luta contra o coronavírus, como a agente de saúde pública que contestou Malafaia. Pessoas que da sua vivência diante da praga aguçaram o sentido de, junto aos textos bíblicos, reconheceram que no passado também ocorreram doenças terríveis. Para isso, a agente raciocina algo desafiador para o religioso de hoje: ao ler o texto, deve-se buscar o contexto de sua produção, de sua história. Essa é uma saída sem igual para romper com as modas fundamentalistas que lotam templos no meio da pandemia, e apoiam cegamente o governo genocida de Bolsonaro.   

Apresentei ao longo deste texto outra possibilidade, mais afinada com a situação de calamidade epidêmica que se passa hoje. Interessante que no mundo bíblico existem casos de situações de saúde que incluíam a reclusão e os cuidados com a alimentação e,  com a higienização. Essa opção não interessa às grandes estruturas religiosas pentecostais. Dessa forma, cão ao inverso da lógica cristológica do cuidado e do acolhimento, preferindo o lucro, o dinheiro e a economia, do que à ética do cuidado de Jesus, principalmente diante dos doentes, dos mais velhos e dos excluídos socialmente. É importante se destacar que todo esse complexo de cuidado de saúde, de luta pela vida e de espiritualidade emergido em Levítico junto ao povo bíblico se chama “santidade”. Ser “santo”, no livro de Levítico, é, antes de tudo, lutar pela saúde pessoal e da comunidade.

Diferentemente do que líderes religiosos como o apostolo Valdomiro Santiago, o bispo Macedo e o pastor Silas Malafaia praticam, os sacerdotes de Levítico tinham a função “examinar” (Levítico 13,3.5.6), isto é, exercitar o cuidado junto às pessoas na situação  de enfermidade. O inverso do que praticam, incentivando a população a sair das casas. Os líderes religiosos cristofascistas mostram não se preocupar com as mortes que podem ser ampliadas com suas atitudes. Nesse caso, esperamos sinceramente que esses líderes religiosos sejam responsabilizados, assim como o político genocida que eles sustentam. Formam um complexo de sustento governamental de líderes cristofascistas, nada santificados.    

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