

Opinião
Ecos da Primeira Guerra Mundial
Conflitos são um modo de ser dos EUA, não da China, disse Carter


Em 15 de abril de 2019, a revista Newsweek registrou uma homilia do ex-presidente Jimmy Carter. Aos 94 anos, Carter disse aos fiéis de sua congregação religiosa que Trump temia a crescente força econômica da China. A modelagem econômica indicou que a China ultrapassaria os EUA como a economia mais forte do mundo até 2030, e muitos especialistas disseram que já estávamos vivendo no que foi apelidado de “Século Chinês”.
“Desde 1979, você sabe quantas vezes a China esteve em guerra com alguém?”, Carter perguntou. “Nenhuma.” Os EUA, observou ele, desfrutaram apenas de 16 anos de paz em seus 242 anos de história, tornando o país “a nação mais guerreira da história do mundo”, declarou Carter. Isto é assim, disse ele, por causa da tendência dos EUA de forçar outras nações a “adotar os nossos princípios americanos”.
No dia 16 de abril de 2023, o ex-presidente dos EUA Donald Trump lamentou: “Estamos perdendo o Brasil, estamos perdendo a Colômbia, a América do Sul”.
O ex-secretário do Tesouro Lawrence Summers diz que vê sinais “preocupantes” de que os EUA estão perdendo influência à medida que o ritmo da globalização desaparece. “Acho que há uma crescente aceitação da fragmentação e, talvez ainda mais preocupante, acho que há uma sensação crescente de que o nosso (país) pode não ser o melhor fragmento a ser associado.”
Lula sentenciou: “O presidente russo, Vladimir Putin, não toma a iniciativa de parar. O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, não toma a iniciativa de parar. A Europa e os Estados Unidos continuam contribuindo para a continuação desta guerra. Temos que nos sentar à mesa e dizer para eles: basta”.
Esse rosário de citações vai servir de âncora (ou arcabouço?) para incursões – talvez imprudentes e temerárias – nos labirintos geopolíticos que conduziram o planeta à Primeira Guerra Mundial.
Digo imprudentes e temerárias porque já ouvi de um antigo amigo e companheiro da tradicional Academia do Largo São Francisco que não devemos buscar analogias nos baús de velharias da história. Na ocasião, eu dissertava a respeito da longa caminhada percorrida pelo dólar para despejar a libra do trono que ocupava como moeda-reserva, então senhora das transações comerciais e financeiras no mundo globalizado do fim do século XIX.
O período que antecedeu a Primeira Guerra Mundial foi concebido pela consciência ingênua de muitos contemporâneos como uma Idade de Ouro ou Belle Époque. Diz a historiadora Barbara Tuchman que essa sensação foi, de fato, verdadeira para uma fina crosta da classe privilegiada.
“Não foi um tempo exclusivamente de confiança, inocência, conforto, estabilidade, segurança e paz. Todas essas qualidades certamente estavam presentes. As pessoas estavam mais confiantes em valores e padrões, mais inocentes no sentido de reter mais esperança na humanidade do que são hoje, embora não fossem mais pacíficas nem, exceto para os poucos superiores, mais confortáveis.”
“Nosso equívoco está em assumir que a dúvida e o medo, a fermentação, o protesto, a violência e o ódio não estavam igualmente presentes. Fomos enganados pelas próprias pessoas da época, que, ao olhar para trás através das lentes da Guerra, veem aquela primeira metade de suas vidas coberta por uma linda névoa do pôr do sol de paz e segurança.”
As bases técnicas do “novo capitalismo” dos trustes e dos cartéis foram revolucionadas
Entre as três últimas décadas do século XIX e a Primeira Guerra Mundial, a economia mundial foi abalada pelas transformações provocadas pela Segunda Revolução Industrial. O aço, a eletricidade, os motores elétricos, o telégrafo, o motor a combustão interna, a química orgânica e os produtos sintéticos, assim como a farmacêutica, revolucionaram as bases técnicas do “novo capitalismo” dos trustes e dos cartéis. Essas inovações, quase todas destiladas das retortas alemãs e americanas, alteraram radicalmente o panorama da indústria, até então marcado pelo carvão, pelo ferro e pela máquina a vapor. A aplicação simples e empírica da mecânica que caracterizou a Primeira Revolução Industrial cedeu lugar ao padrão germânico e americano de utilização sistemática da ciência nos processos produtivos.
As inovações associaram-se ao processo de centralização do capital patrocinado pela nova finança americana e alemã. Rudolph Hilferding investigou o movimento de expansão do sistema de crédito em seu ímpeto de promover a fusão de interesses entre a alta finança e a indústria, constituindo o que ele chamou de capital financeiro.
Publicado em 1919, o livro Industry and Trade, de Alfred Marshall, estuda o declínio da hegemonia industrial britânica e avalia o desempenho dos Estados Unidos, da Alemanha e da França. Marshall acentua dois aspectos que considera decisivos para a liderança alemã e americana: 1. Aplicação da ciência aos novos processos industriais na siderurgia – o processo de Bessemer –, na química, na eletricidade e no motor a combustão. 2. A reestruturação empresarial que acompanha as transformações tecnológicas e produtivas.
Nos Estados Unidos e na Alemanha, os bancos de investimento e os universais – na contramão dos bancos ingleses, que concentravam suas operações no giro dos negócios e no financiamento internacional – passaram a avançar recursos para novos empreendimentos (crédito de capital) e a promover a fusão entre as empresas já existentes. Pouco a pouco, todos os setores industriais foram dominados por grandes empresas, sob o comando de gigantescas corporações financeiras.
Eric Hobsbawm assevera que “a Grã-Bretanha defendeu ao máximo a preservação do status quo e a Alemanha, sua modificação – inevitavelmente, mesmo se não intencionalmente, à custa da Grã-Bretanha. Nessas circunstâncias e dada a rivalidade econômica entre as indústrias dos dois países, não admira que a Grã-Bretanha considerasse a Alemanha o mais provável e perigoso de seus adversários potenciais. Era lógico que se aproximasse da França e – uma vez o perigo russo minimizado pelo Japão – da Rússia, ainda mais porque a derrota russa diante do Japão em 1905 destruíra, pela primeira vez na memória das pessoas ainda vivas, o equilíbrio entre as nações do continente europeu que os chanceleres britânicos tinham dado por certo durante tanto tempo.
Esse fato revelou que a Alemanha era a força militar dominante na Europa, de longe a mais temível. Esses foram os antecedentes da surpreendente Tríplice Entente anglo-franco-russa. A divisão da Europa nos dois blocos hostis levou quase um quarto de século, da formação da Tríplice Aliança (1882) à configuração da Tríplice Entente (1907). •
Publicado na edição n° 1256 de CartaCapital, em 26 de abril de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Ecos da Primeira Guerra Mundial’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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