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Economia? Não, ideologia

O teto de gastos visava banir do leque de opções as políticas keynesianas. O arcabouço fiscal não pode cometer o mesmo erro

O ministro Paulo Guedes. Foto: Carl de Souza/AFP
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A introdução de um teto de gastos públicos na Constituição brasileira não teve nada de “técnico”, mas de profundamente ideológico. Para colocar as coisas em termos simples, a norma constitucional visa banir do leque de escolhas disponíveis as políticas keynesianas de aumento dos gastos públicos para responder aos momentos de recessão econômica. Na prática, para o dizer de forma clara, o que essa opção significa é tornar inconstitucional a política econômica de esquerda para combater crises. Com essa norma, apenas para dar um exemplo impressivo, o plano New Deal do presidente Franklin Roosevelt tornar-se-ia inconstitucional.

Na verdade, todo o debate realizado no Brasil na altura da adoção de emenda constitucional foi diretamente importado da Europa, onde ele existiu igualzinho na sequência da crise financeira. Assim sendo, talvez a recente história europeia da famosa “política de austeridade” ajude a perceber melhor o debate atual sobre o teto de gastos e o novo arcabouço fiscal. Comecemos por um juízo político de enquadramento: a crise financeira de 2008 foi o primeiro grande teste à coesão europeia e com ela veio também o seu primeiro e mais clamoroso falhanço.

De um momento para outro, sob a liderança alemã (ou, talvez melhor dito, sob a liderança da direita alemã), a política econômica europeia deixou de falar em investimento público em resposta à crise financeira, para passar a falar exclusivamente na necessidade de austeridade orçamental. Subitamente, a Europa deixou de falar em emprego, em educação, em tecnologia, em ambiente, em energia renovável, para se concentrar num ajuste de contas histórico da direita contra os seus demônios preferidos, as políticas sociais. A austeridade constituiu-se então como única resposta redentora e com dois argumentos-base. Primeiro, ela é indiscutível e não tem alternativa – é ditada pela ciência econômica. Segundo, tem também a sua dimensão moral. É preciso redenção – e redenção reclama castigo e sofrimento.

Não deixa de impressionar a maneira como se conseguiu transformar uma típica questão de abuso de liberdade mercantil pelos mercados financeiros (os famosos subprime) numa crise que aponta como culpados os Estados e o excesso de gasto público. Na verdade, a resposta europeia à crise financeira nunca foi uma política econômica, mas um programa ideológico.

Hoje em dia, a história econômica faz-se rápida e tudo fica claro mais depressa – a política de austeridade europeia foi um gravíssimo erro. Se compararmos a política norte-americana com a europeia, o erro destaca-se facilmente: a política monetária expansionista dos EUA recuperou o emprego e o crescimento muito rapidamente, enquanto a austeridade europeia prolongou a crise, agravou a situação social e gerou sérios problemas políticos ao projeto continental. O quantitative easing, instrumento-base da opção monetária expansionista, foi adotado pelos Estados Unidos em 2008. Na Europa, só foi adotado em 2015, e sempre com o voto contra da Alemanha. Eis, portanto, a dimensão do erro – sete anos de atraso, sete anos de equívocos, sete anos de austeridade. Bem-vistas as coisas, a política de austeridade nunca teve fundamento econômico, mas ideológico.

Esta foi a experiência europeia. E será, talvez, importante aprender com ela quando se discute o fim do teto de gastos e o novo arcabouço fiscal. Em primeiro lugar, a inserção no texto constitucional de normas que impõem o equilíbrio orçamental em qualquer circunstância, como é próprio das normas constitucionais, é um erro de oportunidade e um erro de princípio. De oportunidade porque insistir no equilíbrio orçamental em contexto de recessão é um equívoco econômico. De princípio porque o equilíbrio orçamental não deve ser um objetivo permanente de política econômica fora de uma conjuntura de necessidade de redução da dívida pública. Em segundo lugar, substituir o teto de gastos por outra fórmula, como é o caso da proposta de arcabouço fiscal, só me parece possível se esta mudança permitir o princípio essencial de uma política econômica anticíclica – aumentar o investimento público em momentos de recessão, contê-lo em alturas de expansão. Dito de forma simples, o déficit não é um objetivo em si próprio. Em momentos de crise econômica, a principal prioridade é retomar o crescimento. Esta ideia simples deve estar bem presente no importante debate em curso no Brasil. •

Publicado na edição n° 1258 de CartaCapital, em 10 de maio de 2023.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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