Opinião

É preciso ter cuidado com o pensamento binário

Pensamentos pautados em conceitos binários são facilmente – e perigosamente – petrificantes

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Um binário é qualquer coisa que tenha aspecto dual – quer dizer, que seja formada por dois elementos supostamente complementares, ou por duas faces presumivelmente opostas, ou ainda por duas partes hipoteticamente distintas.

Binários são maniqueístas. A expressão originalmente refere-se a um dualismo religioso cuja doutrina, em termos simples, consiste em afirmar a existência de um conflito entre o bem e o mal, mas que passou a significar qualquer visão de mundo que o divida em poderes opostos e incompatíveis.

Um dos piores resultados do maniqueísmo é a petrificação do pensamento, que ao fixar significado em apenas duas possibilidades, desconsidera a infinita variedade que compõe a humanidade.

Chamamos “binário de gênero” qualquer classificação das categorias de identidade “sexo” e “gênero” que se dê de duas formas distintas que, por sua vez, carregam poder de maneira desequilibrada. No binário de gênero existem – e existem apenas – a mulher/feminino e o homem/masculino.

Como sistema de gênero, o binário é tão popularmente aceito que chega a ser tomado como natural. A teoria de gênero, porém, compreende o binário como um construto social a ser questionado por pelo menos dois motivos: a desigualdade social, econômica e política entre mulheres e homens, e o fato de que identidades que se constituem fora do binário sejam rotineiramente compreendidas como problemáticas.

As consequências materiais para quem ousa não se encaixar no dualismo fixo proposto pelo binário de gênero podem ser violentas, e na maioria das vezes o são: vide os modos como mulheres masculinas ou homens femininos são socialmente hostilizados, e as taxas de mortalidade por assassinato que assombram a população transexual.

O binário de gênero insiste que homens são masculinos e mulheres são femininas, o que reduz significativamente as possibilidades de expressão para fora destas noções normativas de identidade.

Basta pensar nas pessoas que conhecemos para nos darmos conta de que ser homem não necessariamente significa ser masculino, bem como ser mulher não necessariamente traduz para ser feminina.

Na teoria de gênero tratamos feminilidades e masculinidades como conceitos que descrevem comportamentos e atitudes, tentando veementemente desatá-los de quaisquer essencialismos pautados na biologia.

Insistir que feminilidades somente podem ser aplicadas às mulheres e masculinidade somente aos homens é fundamentalmente capcioso. O emprego dos adjetivos “masculino” e “feminino” pode até ser útil – mas este binário, sozinho, não comporta a variedade de identidades que informam as diversas relações humanas.

Gayle Rubin é uma antropóloga cultural estadunidense conhecida por suas teorias acerca de gênero e sexualidade. Em seu mais famoso ensaio, O Tráfico de Mulheres: Notas Sobre a “Economia Política” do Sexo, ela discute o papel da mulher como commodity de transações familiares.

É também neste ensaio que Rubin cunha o “sistema sexo/gênero”, conceito que serve para representar o conjunto de dispositivos que permitem que uma sociedade transforme sexualidade biológica em produto da atividade humana.

Partindo de autores que discutiram gênero e as relações sexuais como instituições econômicas (Marx e Engels), normas a serviço de convenções sociais (Lévi-Strauss), e fonte da construção subjetiva da psique (Freud e Lacan), Rubin afirma que estas análises não explicam adequadamente a subjugação feminina e oferece uma reinterpretação destas hipóteses, argumentando que a força de trabalho depende do trabalho doméstico feito pelas mulheres, geralmente sem recompensa financeira.

Ainda de acordo com Rubin, gênero é uma divisão cultural dos sexos imposta e sancionada pela sociedade, que beneficia homens em detrimento das mulheres. Para fundamentar a asserção, Rubin argumenta que fêmeas da espécie humana são transformadas na “commodity mulher” a fim de fomentar uma distinção dual de gênero que garanta, para um deles, acesso sexual e manutenção da linhagem e do patrimônio.

É por isso que, em última análise, Rubin fomenta a esperança de que caminhemos em direção a uma sociedade livre das noções rígidas do binário de gênero, na qual as diferenças sexuais passem a não constituir diferenças sociais com caráter hierárquico e consequências injustas.

O pensamento pós-moderno que precede e informa a teoria de gênero promove compreensões de mundo pautadas em pluralidades interpretativas em detrimento de formas totalizantes de organizar a sociedade.

O binário de gênero é totalizante por persistir na divisão da humanidade em apenas duas categorias. Já a teoria de gênero estimula o entendimento e a aceitação de identidades que não correspondam, apenas e integralmente, às noções essencialistas do binário.

O pensamento pós-moderno não rejeita a razão, como acusam seus detratores, mas sim a representação dogmática da razão como certeza atemporal. A teoria de gênero não rejeita a existência do feminino e do masculino, mas sim a representação dogmática do binário como única forma de categorizar pessoas.

O pensamento pós-moderno oferece uma compreensão de mundo que diz que as coisas não são menos reais por serem culturais ou linguísticas, mas sim sugere que não existe apenas uma realidade universal com a qual todas as culturas e linguagens possam ser equiparadas.

A teoria de gênero oferece uma compreensão de mundo que diz que as pessoas não são menos reais porque suas identidades complexas não cabem dentro de um binário fixo, e sugere a aceitação de realidades materiais que excedam a limitação da dualidade masculino/feminino.

O pensamento pós-moderno não acredita que tudo tenha exatamente o mesmo valor, mas sim que as formas como atribuímos valor devem ser perenemente questionadas. A teoria de gênero enxerga valor no feminino e no masculino, e pontua que as formas como o status quo atribui valor a cada um deles é injusta.

O pensamento pós-moderno e a teoria de gênero, assim, promovem a inclusão social, pois, para compreender ambos, é antes necessário aceitar a multiplicidade de identidades que compõem a grande diversidade humana.

Não existem apenas duas formas de entender gênero, assim como não existem apenas duas formas de compreender nada. E quanto maior o número de possibilidades acatadas como plausíveis, maior será nossa habilidade de viver com as diferenças.

Por isso é recomendável ter cuidado com os binários. Eles podem petrificar o pensamento.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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