Esther Solano

esther@cartacapital.com.br

Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Complutense de Madri e professora de Relações Internacionais da Unifesp

Opinião

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É para gargalhar dos ricos que pensam que o PT é comunista

Uma experiência sociológica em um bar ‘chique’ de um bairro dito nobre de São Paulo: das críticas a Bolsonaro passaram a falar do PT

É para gargalhar dos ricos que pensam que o PT é comunista
É para gargalhar dos ricos que pensam que o PT é comunista
A elite espreitou a oportunidade de se livrar do PT
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Confesso que sou um pouco fofoqueira. Minto. Sou bastante fofoqueira. Sempre digo que estudei Sociologia por ser uma forma um pouco mais glamourosa de bisbilhotar a vida alheia ou, ao menos, uma forma de legitimar o gosto pela indiscrição. Algo que adoro fazer é me sentar em algum lugar e observar as pessoas. Poderia observar durante horas como caminham, olham, comem, o que falam, como se olham, como se escutam ou como não se escutam. Adoro ver os movimentos, olhar nos olhos. Gosto de dissecar, com um bisturi invisível, as anatomias sociais.

Às vezes vou aos lugares que a elite brasileira frequenta: shopping, bairro dito nobre, loja de luxo. Minha condição de imigrante europeia branca faz com que ninguém nunca pergunte o que faço numa loja na qual nunca compro nada. Essa mesma loja que logo assume que um homem negro a ultrapassar a porta só pode ser um assaltante. Infiltro-me entre eles, observo, escuto, me aproximo e tento entender o comportamento tão perturbador que enxergo em muitos deles. Tão gélido, tão impassível diante do sofrimento. Quero entender essa falta de alma.

Bem, dias atrás fui até um desses ditos bairros nobres e me sentei num barzinho “chique” do lado de um grupo de gente com bolsas que custavam vários dos meus salários de professora. O tema, no começo, era uma chatice sem-fim, mas rapidamente alguém falou de Bolsonaro e aí a coisa ficou interessante. Eu estiquei minha orelha como uma parabólica. Pensei, “vamos lá, agora vai”.  Críticas a Bolsonaro. É um idiota. O País está no seu pior momento. Não dá mais. Não sabe governar. É uma vergonha. O País não aguenta até as eleições. Opa, pensei, caí numa turma de ricos vermelhos. Será? Ainda há esperança. Só que não… menos, nem tanto.

Das críticas a Bolsonaro passaram a falar do PT. E aí, meus amigos, a coisa desandou e desandou feio. Olha que eu estudo bolsonaristas há anos, mas ainda fico perplexa diante de alguns comentários totalmente kafkianos. A estupefação é peça onipresente de meu cotidiano. O PT é comunista. O PT vai transformar o Brasil numa Venezuela. O BNDES financia Cuba.  O Estado vai intervir em tudo. O Estado vai acabar com a liberdade.

Bolsonaro é ridículo nos círculos requintados. Nos jantares de gala, não combina a presença de um boçal do estilo do monstro. A imbecilidade não dissimulada pode causar vergonha. Bolsonaro não cumpriu o prometido, mas o PT não dá. O PT é comunista. Essa frase me leva ao desvario. O PT é comunista. Com grande probabilidade, os presentes naquele bar tinham tido acesso a boas escolas, às melhores universidades. Sim, sim, eu sei muito bem que uma educação cara não significa uma boa educação, sei muito bem como a educação pode ser um processo fordista de produção de seres impensantes em massa, sei muito bem que uma educação de alto custo pode ser uma educação formadora de idiotas, mas… gente… o PT é comunista? Sério?

Resta falar que aquele bar fica em São Paulo. A São Paulo de Alckmin, cotado para compor a chapa com Lula. Alckmin que eu chamaria de muitas coisas, menos de comunista. Mas o PT é comunista. É para surtar.

Longe de mim cair na simplificação obtusa de que a totalidade da elite brasileira é burra, fascista, bolsonarista. Sei muito bem que não é desse jeito. Generalizar dessa forma não faz o menor sentido. É incabível. Mas como é possível que alguns desses sujeitos com acesso ao mundo, à educação, à informação, a privilégios, a portas de entrada e saída com as quais nós nem podemos sonhar, tenham essa incapacidade cognitiva tão apavorante? Como é possível que um sujeito desses não tenha aproveitado nenhum dos seus privilégios, não digo para ser inteligente, mas ao menos para ser menos idiota? Como é possível que eles façam que um mosquito pareça um ser de sagacidade superior? Eu sei, são perguntas retóricas das quais talvez saibamos a resposta, mas é que realmente essas situações me tiram do sério.

Aqueles ricos a pensar que o PT é comunista e com medo de que, ao voltar ao poder, estatize suas propriedades é para gargalhar, se não fosse para chorar. Não consegui ficar até o fim da conversa

Confessei que gosto muito de fofoca, mas gosto mais de minha saúde mental. Daqui a pouco eu animo a ir até o próximo bar desse estilo. Depois conto para vocês. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1197 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “E ainda chamam de elite”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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