Alberto Villas

villasnews@uol.com.br

Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

É impossível levar o barco sem temporais

Será que o meu coração nunca mais vai bater forte com aqueles piiiim anunciando turbulência no meio do oceano, em plena madrugada?

É impossível levar o barco sem temporais
É impossível levar o barco sem temporais
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Nunca te vi, não sei que cor você tem já que no Google são muitas. Como pode uma coisa tão bela, tão ínfima, ser tão cruel? Fecho as janelas para que não entre, não saio às ruas para que não trombe com você, lavo as mãos como Poncio Pilatos para te afastar. Não consigo te captar no ar, sequer te enxergar indo embora no ralo da pia, acompanhando da água e do sabão. Minúsculo, invisível, entrou no avião, no trem, no navio e atravessou os sete mares. De Whuam à Juiz de Fora, num piscar de olhos. De Milão a Conceição do Mato Dentro, de Nova York a Santa Rita do Sapucaí. Da Suécia à República dos Camarões. Cobrimos nariz e boca para não te respirar, não te engolir. Nunca vi a imagem da gripe espanhola, mas o avanço da ciência fez a sua estar estampada todos os dias na tela de fundo dos telejornais. Essa bolinha redonda cheia de espinhos aparece diariamente junto a números que vão só aumentando, que começou com um e já está em quarenta e seis mil. Cruzes, covas você provocou. Choro, lamento, distância, incerteza, tristeza, revolta, mais um dia vai começar.

Quisera eu ser que nem Tom Jobim, que sabia o nome de todos os passarim. Flora e fauna, de cor. Do baobá ao jacarandá, da jaguatirica ao tamanduá. Reconhecia o canto da juriti, o voo do urubu, as garras do carcará. No piano, dedilhava o pau, a pedra, o fim do caminho e quando não sabia o nome científico do tuiuiú, procurava num dicionário específico que ficava numa prateleira, perto da cristaleira, junto com outros dezessete dicionários. Garanto que Tom Jobim ficaria dentro de casa nessa quarentena, quieto no seu canto. Ia regar as roseiras, o abacateiro, o pé de maracujá. Ia se divertir com a lerdeza da tartaruga, com a malemolência do bicho preguiça, com o tico-tico comendo todo todo o seu fubá. Queria ser que nem Tom Jobim que pegava na fruteira uma goiaba e descrevia a etimologia da fruta, olhando pra ela, que nem Wikipédia: A palavra goiaba originou-se do termo aruaque para a fruta, guaiaba. Sabia que em francês é goyave e em inglês, guava. Via se tinha bichinho e engolia, explicando que a mosca da fruta coloca os seus ovos na casca e eles encubam dentro da fruta e viram bicho de goiaba. Tudo pra ele tinha explicação, se não fosse científica, popular ou ficção. Tom Jobim ia sentir saudade de andar nas nuvens vendo um pedaço da asa do avião. Avistar Nova York, sentir saudade daquele cheesecake, não sei se de uma Coca-Cola estupidamente gelada. Acordei com um tom na cabeça e daqui da minha janela ouço as maritacas. Quisera eu pegar o primeiro avião, um ônibus, um trem. Quisera eu saber tocar um instrumento, um alaúde de corda palhetada, com braço trastejado que nem violão. Vai, minha tristeza/E diz a ela que sem ela não pode ser/Diz-lhe numa prece/Que ela regresse/Porque eu não posso mais sofrer.

E cada qual no seu canto e em cada canto uma dor. Já ouvi isso antes na voz de um Chico menino ainda, tímido e desajeitado, ao lado de Nara, mais ainda. Havia banda e a banda passava cantando coisas de amor. Estou rodeado de trilhas sonoras para enfrentar dias, já são oitenta e sete, amanhã oitenta e oito. Tenho dúvidas se o oito é o infinito de pé ou se o infinito é o oito deitado. Tenho um milhão de amigos e nem me lembro mais do barulho do tin-tin dos copos de cerveja. Não me pergunte/Não me responda\Não me procure/E não se esconda/Não diga nada/Saiba de tudo/Fique calada/Me deixe mudo/Seja num canto/Seja num centro/Fique por fora/Fique por dentro. Tenho lido todas as reportagens sobre sonhos em tempo de corona. Se quiser saber, sonhei que um cactus havia brotado no meu celular e quando ele tocou às seis horas em ponto, tive medo de bater a mão. Ainda bem que vi antes e não me estrepei. Era cactus, mas era vírus, era corona, era covid. Hoje soube que o verde tão lindo dos gramados campos de lá estão todos com círculos para que fique cada qual no seu canto na hora do pic-nic. Se a esperança não vem do mar, nem das antenas de TV, vem de onde? Das asas da Panair? Falam agora de corticoide, enquanto tomo o meu Puran 25. Continuo aqui armazenando pensamentos. Pra ser sincero, não vejo a hora de lhe dizer tudo aquilo que decorei.

Voar pra onde? Para a ilha de Komodo pra ver os dragões? Pro deserto de D’Ad Dahna pra assistir o concurso de Miss Dromedário? Pegar o primeiro avião com destino a felicidade? Tomar uma Coca-Cola nas asas da Panair? Será que sou feliz, por isso estou aqui e quero voar nesse balão? Ou pluct plact zum, não vou a lugar nenhum? Como estarão os aeroportos? As pessoas estão voando pra onde? Tem avião pousando? Os funcionários da Anac estão com a pistola nas mãos para tirar febre? Quanto está a temperatura lá fora? E na sua testa? Com quantos quilos de medo se faz um cidadão? Ainda distribuem goiabinha na Gol? E cream-cracker na Latam? As aeromoças ainda sorriem ou estão tristes como eu? Será que nunca mais vou ouvir dentro de alguns minutos pousaremos no Aeroporto Charles de Gaulle, dentro de alguns minutos pousaremos no Aeroporto Zumbi dos Palmares, em Maceió, dentro de alguns minutos pousaremos no aeroporto Internacional José Martin, em Havana? Será que o meu coração nunca mais vai bater forte com aqueles piiiim anunciando turbulência no meio do oceano, em plena madrugada? Será que nunca mais vou ouvir o clact do carimbo no passaporte e o policial me desejando bom dia? Será que nunca mais vou ouvir a mocinha pedindo para que eu tire o relógio, o cinto, metais e moedas pra passar no raio-X? Será que nunca mais vou ouvir aquele choro aflito do bebê assim que a aeronave levanta voo? Será que nunca mais vou procurar na bolsa à frente do meu acento uma revista bacana falando de Firenze? Será que nunca mais vou ver aquele porquinho com um X no cardápio da Turkish Airlines ou aquele guardanapo de linho da SAS? Ando tão nostálgico que hoje acordei pensando naquele tucano cantando Varig, Varig, Varig!

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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