Caetano Scannavino

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É empreendedor social, coordenador da ONG Projeto Saúde & Alegria, com atuação na Amazônia.

Opinião

É de menos pólvora e mais ciência que o Brasil precisa

Desmatar uma floresta é como deletar um HD sem saber o que tem dentro, inclusive eventuais tratamentos de doenças até então sem cura

Amazônia (Foto: Divulgação)
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No país do agronegócio, os custos do quilo da carne ou da soja são bem mais familiares do que os associados aos ativos naturais, no país também da biodiversidade. Poucos se dão conta de que 1 grama de veneno do nosso escorpião amarelo chega a custar 371 mil reais – isso mesmo, trezentos e setenta e um mil reais. Da jararaca, 15 mil reais. Da Urutu, outra serpente brasileira, 55 mil reais. Dá até para comprar pela internet, montando carrinho de compras no site da Sigma-Aldrich — multinacional originalmente americana de componentes químicos e técnicas de laboratório, adquirida em 2015 por 17 bilhões de dólares pela alemã Merck.

Por falar em peçonhentos, do veneno da jararaca surgiram medicamentos que movimentam anualmente cerca de 8 bilhões de dólares, como o captopril, conhecido remédio para hipertensão arterial. Detalhe: apesar da pesquisa inicial ser brasileira, quem desenvolveu e patenteou foram os EUA.

Print do carrinho de compras da pagina da Sigma-Aldrich, com pedido de 1g de veneno (100 x 10mg) de escorpião amarelo (Tityus Serrulatus) no valor de 371.100 reais

Histórias como esta se repetem. Saberes tradicionais dos nossos povos indígenas são também muitas vezes pontos de partida avançados para o desenvolvimento de produtos e patentes lá fora, embora sem as devidas consultas e compensações às populações.

Além de conhecimentos, até sangue dos nossos indígenas acaba sendo levado à revelia. O caso dos Yanomami é emblemático, com a coleta sem que soubessem de amostras para pesquisas genéticas nos EUA, repatriadas somente em 2015, quarenta anos depois. Sangue de povos com pouco contato pode servir para estudos sobre novas arboviroses, sistemas imunológicos, e até armas biológicas.

O mais fácil é lamentar e continuar botando toda culpa nos estrangeiros, mas somos nós que estamos deixando isso acontecer. Difícil avançar quando os tomadores de decisão do país com os maiores ativos naturais do mundo enxergam ciência e meio ambiente como ônus ao invés de bônus.

Se já estava ruim com ministros como Aldo Rebelo ou Gilberto Kassab…

“Perdemos espaço na ciência quando deixamos a teoria da evolução entrar nas escolas. Quando nós não questionamos. Quando nós não fomos ocupar a ciência. A Igreja Evangélica deixou a ciência para lá. ‘Ah, vamos deixar a ciência caminhar sozinha’. E aí cientistas tomaram conta dessa área. E nós nos afastamos.” É o que disse a então missionária Damares, hoje ministra de Estado, lamentando que a ciência foi tomada por cientistas.

Em vez de esbravejar que aquecimento global “é coisa de marxista”, como afirmou nosso ministro de Relações Exteriores, ou “um problema para daqui a 500 anos”, nas palavras do responsável pela pasta de Meio Ambiente, o governo deveria fazer a lição de casa e queixar as nações mais ricas a fazer muito mais, inclusive nos ajudando a ajudá-los. Afinal, não é justo um bioma como a Amazônia, por exemplo, gerar benefícios globais, mas seus custos de conservação permanecerem locais.

Mais do que visão romântica ou um obstáculo para o desenvolvimento, se meio ambiente fosse visto pelo lado da economia, o país jamais estaria entre os que mais desmatam, contaminam rios, grilam terras, nação recordista em matança de indígenas e ativistas socioambientais.

É de menos pólvora e mais ciência que o país precisa. Se a questão é de escolha, o atual governo está escolhendo, por exemplo, anistiar os ruralistas devedores do Funrural em 17 bilhões de reais, valor dez vezes maior do que os 1,7 bilhão que escolheu cortar das universidades federais.

Por pressão desse mesmo setor ruralista, além do nosso Congresso não ter avançado como deveria na nova Lei da Biodiversidade (2015), o Brasil até agora não ratificou o Protocolo de Nagoya – em vigor desde 2014, regulamenta o acesso aos recursos genéticos, aos conhecimentos tradicionais associados, a repartição justa e equitativa dos benefícios, um marco histórico para as nações detentoras no reconhecimento dos direitos de soberania sobre sua biodiversidade.

A continuar assim, é jogar fora poder, futuro e dinheiro. Só na Amazônia, a ciência vem descobrindo nos últimos anos uma nova espécie a cada dois dias. Faz todo sentido quando dizem que desmatar uma floresta primária é como deletar um HD sem saber o que tem dentro, inclusive eventuais tratamentos de doenças até então sem cura.

Se nos faltam recursos para investir, para desenvolver produtos a partir do conhecimento produzido pelos próprios brasileiros, parcerias são bem-vindas. Nem é o caso de barrar o acesso dos laboratórios internacionais às nossas riquezas. O que precisa são regras claras que compensem adequadamente o país (e quando for o caso, os povos indígenas, respeitando direitos e protocolos), que transfiram tecnologia aos nossos pesquisadores, que estabeleçam mecanismos justos e rentáveis de modo a proteger e manejar adequadamente todos esses ativos e saberes a serviço da humanidade.

O verdadeiro debate não é o embate raso ‘desenvolvimento x meio ambiente’, mas qual modelo empreender. Por exemplo, no caso da Amazônia e suas tantas universidades que formam gente para ir embora, é preciso olhar para além do agronegócio. Não seria proibitivo vislumbrar polos estratégicos na região com plantas industriais de baixo carbono, focadas em inovação, pesquisa, tecnologia, biotecnologia, processamento de produtos florestais made in Brazil. E no caso das áreas agricultáveis já consolidadas no Bioma, vale também a mesma lógica de modernização, com politicas e investimentos que reduzam os impactos e aumentem a eficiência, a produtividade, a rentabilidade, em detrimento ao lucro fácil da especulação de terras.

O agronegócio tem sua importância, mas restringir visão de desenvolvimento à soja, boi e outras commodities é apequenar, é ter medo de liderar o futuro, é querer ser pautado ao invés de pautar. É amarelar em tempos que riquezas estratégicas mudam de cor — do negro do petróleo para o verde da floresta em pé.

Tempos estes, como bem dizia Isaac Asimov, alimentados pela falsa noção de que “democracia significa que a minha ignorância é tão boa quanto o seu conhecimento”.

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