Opinião

Duas dicas de leitura para refletir sobre os males do fundamentalismo

Uma sugestão: comece o seu 2020 com as virtudes de ‘Santo Dias’ e as reflexões de ‘Fundamentalismo, terrorismo, religião e paz’

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Acabo de ler o excelente livro “Santo Dias – quando o passado se transforma em história”, das autoras Luciana Dias (filha de Santo), Jo Azevedo e Nair Benedito, publicado pela Editora Expressão Popular.

O volume tem inúmeras virtudes. Para mim, as principais são a contextualização socioeconômica daquele período da ditadura militar; a forma quase didática de expôr como a Pastoral Operária se estruturou e atuava na Arquidiocese de São Paulo – inclusive permitindo que um dos protagonistas daquelas lutas chegasse posteriormente à Presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva; e a manipulação da lei como arma política, isentando de pena o policial militar assassino de Santo Dias, da mesma forma como, décadas depois, o “lawfare” viria a impedir que Lula voltasse à Presidência da República.

Convém mencionar que o assassinato de Santo Dias, em 30 de outubro de 1979, ocorreu em meio à luta popular pelo fim da ditadura militar, que continuava assassinando, sequestrando e torturando membros da oposição, além de reprimir com toda a violência as justas reivindicações salariais do operariado.

No dia 31 de outubro, o féretro de Santo Dias reuniu mais de 30 mil pessoas, em cortejo que foi da Igreja da Consolação, onde o corpo fora velado, até a Catedral, onde o cardeal arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, presidiu a missa de corpo presente.

A morte de Santo Dias foi nefasta até para a própria ditadura, precipitando-lhe a derrocada.

Na atual conjuntura, em que a resistência ao arbítrio novamente se impõe, vale a pena notar a forma como D. Paulo estruturara as pastorais arquidiocesanas, com grande autonomia, capacidade de escuta e de ação junto às comunidades. Para isso, vendeu o próprio palácio do arcebispado, trocando-o por mais de uma centena de terrenos na periferia de São Paulo, a fim de melhorar as condições materiais da evangelização.

O desmonte de estrutura tão capilar e perfeita veio do exterior, como sempre ocorre na América Latina e no Caribe, quando se trata de frear o progresso socioeconômico e retirar direitos; foi executada por João Paulo II, que muito conhecia do imperialismo soviético, mas nada do estadunidense, imensamente mais poderoso e letal.

Com efeito, cabe perguntar como a América Latina e o Caribe poderão alcançar a soberania e o desenvolvimento, sem derrotar o imperialismo, que sistematicamente os faz regredir ao ponto de partida.

De fato, os reiterados e cíclicos golpes de estado na região são fruto da intervenção imperialista externa, aliada aos capitães do mato locais (papel desempenhado pelos militares e amplos setores da imprensa, do executivo, do legislativo e do judiciário).

Entretanto, vale lembrar que os senhores imperiais e os lacaios locais podem muito, mas não tudo.

Da mesma forma como leram – para o mal – o mapa do bem, acima esboçado na Arquidiocese de São Paulo (cujos bispos auxiliares eram D. Angélico Bernardino, D. Luciano Mendes de Almeida e D. Mauro Morelli) também é possível ler o mapa do mal e transformá-lo em bem: favorecer a agregação comunitária em torno de valores profundos; estabelecer redes de apoio social e ampliar os espaços de trocas culturais, principalmente no interior do país.

Neste momento de início de ano, uma outra leitura oportuna é “Fundamentalismo, terrorismo, religião e paz”, de Leonardo Boff, da Editora Vozes. Na impossibilidade de reproduzir todas as excelentes reflexões, seleciono dois trechos que me parecem da maior relevância para o Brasil e o mundo: “Atualmente, a humanidade é invadida por ideias e comportamentos fundamentalistas. O fundamentalismo não é uma doutrina. É uma forma de interpretar e de viver a doutrina. Fundamentalista é aquele que imagina serem a sua doutrina, a sua verdade, o seu conhecimento, a sua forma de governo, o seu estilo de vida, a sua filosofia e a sua religião como os únicos válidos e verdadeiros. Todos os demais navegam no erro. E o erro não possui nenhum direito, deve ser perseguido, combatido e, eventualmente, exterminado…O grande desafio do século XXI será superar as concepções fundamentalistas e assim abrir espaço para o diálogo intercultural e inter-religioso e para a criação de uma cultura de paz, que é a convivência das diversidades, buscando o bem comum da humanidade e do planeta Terra”.

Essas palavras ganham ainda maior momento, quando chegam notícias de mais terreiros atacados no Distrito Federal e na Baixada Fluminense.

O Cristo, porém, já lembrara: “A casa de meu pai tem muitas moradas.”

Neste pobre país tão assolado pela violência, pela intolerância e o racismo, e que, de forma tristemente simbólica, acabou elegendo um propagandista da tortura, da homofobia e do racismo, a reflexão sobre o fundamentalismo se faz cada dia mais urgente.

Os exemplos do mal que gerou pelo mundo são infindáveis, como são suas vítimas, tanto nos países pobres, como nos ricos.

Extirpar-lhe as raízes requer atenção, diagnóstico correto e prescrição de doses de democracia, diálogo e escuta, pois a verdade – como não podemos esquecer – é fruto do confronto amoroso de ideias, mesmo dos inimigos, uma vez que, como bem percebeu a cultura chinesa, até as trevas podem ser condutoras de luz, dependendo da nossa percepção, leitura e ação para que a aurora se imponha à noite e a supere.

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