Economia
Dogmas monetários renitentes
Roberto Campos Neto está virando unanimidade negativa


O problema que o Banco Central representa vem se agravando com a teimosia do seu presidente, que insiste em manter os juros na lua e demora a sinalizar o início da redução, já tardia, uma vez que a maioria dos indicadores relevantes justifica cada vez mais claramente essa redução. Não quero falar hoje da conjuntura da política monetária brasileira, mas sim de questões estratégicas que permeiam o debate sobre moeda e juros, não só no Brasil, como também em muitos outros países, mas que nem sempre são explicitadas e sequer reconhecidas nas discussões nacionais. Elas constituem o pano de fundo para as dificuldades que enfrentamos na área monetária.
Refiro-me a duas questões interligadas: a autonomia legal do BC e o regime de metas de inflação. São políticas reverenciadas entre nós, mas muito discutíveis, para dizer o mínimo. Viraram dogmas desde o início dos anos 1990 em grande parte do mundo ocidental, e acabaram sendo importadas pelo Brasil – o regime de metas em 1999 e a autonomia legal do BC em 2021.
A ortodoxia nacional aferra-se a esses dogmas, muito embora o seu declínio já se faça sentir nos países desenvolvidos, onde tiveram origem. Em muitos países, sobrevivem apenas pro forma, tendo sido abandonados na prática. Os BCs “autônomos” estão cada vez mais integrados à política econômica do Estado. A propalada autonomia, que nunca foi plena, existe hoje mais nos textos legais e nos livros-textos do que na realidade. O regime de metas, adotado como “âncora” para a política monetária em muitos países desenvolvidos e em desenvolvimento, foi sendo flexibilizado e, em diversos casos, arquivado sem alarde.
Há, ou havia, certa plausibilidade nos esquemas defendidos pelos economistas ortodoxos, certo apelo ao bom senso. Mas a realidade desapontou repetidamente as expectativas dos seus defensores.
Quanto ao BC, logo ficaria claro que a política monetária não pode ser conduzida independentemente do resto da política econômica. Se o BC, apoiado na sua autonomia legal, quiser atuar em faixa própria, sem coordenar seus passos com o Ministério das Finanças, certa confusão é inevitável e nada de positivo resultará. O BC é, sempre e em toda parte, um braço do aparato estatal. Um BC que pretenda ser independente ou autônomo de facto, e não apenas de jure, torna-se um estorvo para a condução da política econômica. Isso raramente acontece – o caso brasileiro de 2023 é um exemplo entre poucos.
A ideia do BC autônomo tornou-se especialmente problemática nos tempos de intensa polarização política em tantos países, inclusive no Brasil. Nesse ambiente, a não coincidência entre os mandatos do presidente do BC e o do presidente da República pode tornar o comando da autoridade monetária um corpo estranho dentro de um novo governo, como vem ocorrendo no Brasil depois da posse do presidente Lula. Roberto Campos Neto tenta justificar tecnicamente suas decisões, em especial os juros excepcionalmente elevados, mas suas justificativas não são sólidas. Vem sendo enfaticamente rejeitadas pelo presidente da República e por um número crescente de políticos, economistas, empresários, e até mesmo por pessoas do mercado financeiro. Roberto Campos Neto está virando unanimidade negativa. No campo oficial, muitos têm a sensação, correta ou não, de que o presidente do BC é um bolsonarista infiltrado, que sabota deliberadamente os planos econômicos governamentais.
O segundo dogma, o regime de metas para a inflação, também foi revelando fissuras importantes. Mesmo quando definido de forma relativamente flexível, o regime mostra-se com frequência difícil de manejar. Metas que pareciam razoáveis no momento da sua definição revelam-se depois draconianas, exigindo taxas de juro elevadas, com impacto sobre o nível de atividade e as finanças públicas. A capacidade de previsão dos economistas é sofrível. “O esperado nunca acontece; é o inesperado sempre”, dizia Keynes. Fatos novos, eventos imprevistos, choques de diferentes tipos submeteram as regras, inclusive o regime de metas para a inflação, a tensões às vezes inadministráveis. Sobreveio o descrédito. Em muitos países, as metas foram de tal maneira flexibilizadas que o regime ficou virtualmente indistinguível da discricionariedade pura, isto é, muito próximo de um regime de moeda fiduciária desancorada, sem lastro.
Aqui no Brasil, esses dogmas monetários encontram, entretanto, um derradeiro refúgio. Como dizia Millôr Fernandes, quando as ideologias envelhecem, elas vêm morar no Brasil. Mortas e enterradas no resto do mundo, ganham aqui uma sobrevida final. •
Publicado na edição n° 1266 de CartaCapital, em 05 de julho de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Dogmas monetários renitentes’
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