Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Doar agasalhos não basta. É preciso defender políticas públicas de combate à pobreza

‘Tais ações precisam vir acompanhadas de uma defesa intransigente de políticas públicas e governos comprometidos com a vida humana’

Foto: iStock
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Tenho uma formação religiosa um tanto quanto híbrida. Fui batizada na Igreja Católica. Fiz primeira comunhão. Após uma viagem a Salvador, me interessei pelo candomblé. Frequentei um terreiro de umbanda durante cinco anos. Passei mais meia década em um centro espírita kardecista. Há algum tempo, andei lendo coisas sobre o budismo. Hoje, o glorioso Clube Atlético Mineiro é a minha única religião, minha profissão de fé.

Nos últimos dias, lembrei de uma experiência no centro espírita que frequentei. Como é de conhecimento de todos, um dos princípios da religião fundada pelo francês Allan Kardec é a “caridade”. Aqui, as aspas são propositais, pois é um termo, uma ação que precisa ser muito discutida, principalmente em se tratando de um País tão desigual quanto o nosso.

Ao final de cada encontro, contava com a carona do André, meu colega de reunião mediúnica. Não me recordo o motivo, mas nossa conversa desaguou no Bolsa Família. Eu, que ao longo de toda minha trajetória como professora da Educação Básica dei aulas em regiões nas quais muitos dos meus alunos conheciam a fome de perto, sempre defendi o programa, enquanto ele mostrava-se contrário.

– Mas, André! Pensa! O Bolsa Família tirou mais de 6 milhões de pessoas da miséria!, eu disse.

– Luana, elas iriam sair da miséria de qualquer jeito!, ele retrucou, como se isso fosse acontecer em razão da vontade divina, em um passe de mágica.

– André… as coisas não são tão simples assim, argumentei.

– Luana, eu acho que as pessoas devem conseguir as coisas com as próprias pernas. Foi o que ouvi dele.

Indignada com um argumento que não demonstrava qualquer empatia pela condição sofrível dos mais pobres, enfiei os dois pés na porta. Como diria a Miriam, minha irmã, que nos deixou há exatos nove anos, fui na jugular do André:

– Deixa eu ver se entendi! Fazer “campanha do quilo” e dar comida aos pobres, pode! Receber o Bolsa Família e ter autonomia para comprar o que quiser, não pode, não!, disse, sem qualquer receio da reação dele.

Minha resposta teve consequências. Perdi minha carona. André nunca mais falou comigo. Uma pessoa, um comportamento, um modo de ver a vida e o mundo se revelaram ali, o que foi determinante para que eu perdesse o interesse pelo espiritismo.

Lembrei do André, da nossa conversa, em função do frio nos últimos dias, que em São Paulo, por exemplo, numa só noite, matou sete moradores em situação de rua. Nesta época do ano, é muito comum ver as pessoas mobilizadas em campanhas do agasalho, buscando aplacar as dificuldades daqueles que não têm roupas adequadas e cobertores para enfrentar as baixas temperaturas.

São ações importantes, infelizmente necessárias, uma vez que a miséria e a pobreza no Brasil têm se aprofundado cada vez mais. Mas elas precisam vir acompanhadas de uma reflexão crítica, a partir do entendimento de que a existência de pessoas sem recursos para se proteger do frio resulta dos altos índices de desemprego, do estrangulamento e esvaziamento das políticas públicas de inclusão social, da política econômica neoliberal que empurra milhões de brasileiros para condições de vida extremamente precárias.

Refletindo sobre tudo isso, lembro do André e também das palavras do mestre Paulo Freire: “A grande generosidade está em lutar para que, cada vez mais, estas mãos, sejam de homens ou de povos, se estendam menos, em gestos de súplica. Súplicas de humildes a poderosos. E se vão fazendo, cada vez mais, mãos humanas, que trabalhem e transformem o mundo”.

Neste inverno que gela até os ossos, somente distribuir agasalhos, muitas vezes para alimentar o ego e aplacar a consciência, não basta. Tais ações precisam vir acompanhadas de uma defesa intransigente de políticas públicas e governos comprometidos com a vida humana, com o exercício pleno da cidadania daqueles que mais do que nunca têm sido impedidos de exercê-la.

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