Renato Meirelles

Comunicólogo, presidente do Instituto Locomotiva e fundador do Data Favela, autor de 'Um País Chamado Favela' e 'Como Ser Uma Empresa Antirracista'

Opinião

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Do 99×1 ao tarifaço

A importância do inimigo na disputa política

Do 99×1 ao tarifaço
Do 99×1 ao tarifaço
Em meio à crise do 'tarifaço', Lula usa boné com a frase "O Brasil é dos brasileiros" – Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República
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Desde Getúlio Vargas, todo governo brasileiro elege – ou recebe de bandeja – um antagonista para protagonizar o enredo nacional. Vargas enfrentou as oligarquias do café, Juscelino Kubitschek sacudiu o atraso, Fernando Collor travou guerra contra os “marajás”, FHC empunhou a cruzada anti-inflação, Lula 1 e 2 miraram a fome e a desigualdade, Jair Bolsonaro bradou contra o “sistema”. Até o mês passado, o atual governo ainda procurava o seu antagonista. Achou. No terceiro ato de Lula, o Palácio do Planalto carimbou bancos, bilionários e bets como o 1% que paga proporcionalmente menos imposto do que a barraca de pastel do Seu Zé. Era o empurrão que faltava para organizar o script “ricos ­versus pobres” num país onde a maioria dos brasileiros considera injusto que quem tem mais contribua menos.

O movimento tem lastro empírico – e sentimental. Não são planilhas que movem corações, é a cena do helicóptero a levantar voo antes de qualquer fiscal aparecer. Nas andanças do Instituto Locomotiva, ouvi de uma manicure na periferia: “Só falta pobre pagar imposto até no boa-noite”. Essa frase explica por que a sigla 99×1 virou senha de mobilização: simplória o suficiente para circular na mesa do bar, poderosa o bastante para pautar o telejornal.

A estratégia ainda embute aritmética parlamentar. Transformar tributação progressiva em teste moral transmitido pelo celular obriga deputados a escolher lado: votar contra é virar, em vídeos de 15 segundos, “advogado de milionário”. O efeito aquece a base lulista. que estava tão fria quanto o inverno gaúcho. Parlamentar que vacila vira meme antes do amanhecer.

Quando o roteiro parecia fechado, Donald Trump virou a mesa com o tarifaço de 50% sobre produtos brasileiros. Levantamento ­AtlasIntel/­Bloomberg de 15 de julho mostra que a popularidade do governo já reage, enquanto a ampla maioria dos eleitores condena as tarifas impostas pela Casa Branca. O bilionário estrangeiro encaixou-se como antagonista prêt-à-porter, reforçando o mote “nós contra eles” sem que o Planalto mexesse um músculo a mais.

Para a oposição, o dilema é linguístico: como vestir verde-amarelo e, ao mesmo tempo, aplaudir o protecionismo de Trump? O paradoxo neutraliza chavões e devolve a iniciativa narrativa ao Planalto, ativo precioso num Congresso onde cada voto custa suor. Vale a metáfora familiar: irmãos que discutem no churrasco se unem quando o vizinho bate à porta.

Mas antagonistas não se elegem sozinhos. O eleitor exige comprovação material, não retórica. O governo tenta entregar via correção da tabela do IR, limite a juros do rotativo e crédito barato ao microempreendedor. Se a arrecadação progressiva bancar remédio, creche e asfalto, o 99×1 vira case de ­Harvard. Se o tarifaço inflar o arroz, o tiro sai pela culatra e o roteiro escorrega para a seção de tragédias.

Há custos em manter vilões permanentes. Bancos irrigam campanhas, bilionários pautam opinião e casas de aposta estampam camisas de futebol no horário nobre. Transformar ícones de antagonismo em fonte perene de recursos públicos exige comunicação cirúrgica para não parecer mero caça-níquel ideológico.

A lição maior é a fraqueza da futurologia. Analistas que em janeiro cravaram Lula empacado em 45% de aprovação agora revisitam planilhas. Falta mais de um ano para as eleições de 2026, tempo bastante para choques econômicos, CPIs repentinas ou tuítes mudarem todo o tabuleiro. Prever política é colecionar tombos. Poucos, em 2017, apostariam na vitória de Bolsonaro ou numa pandemia que derrubaria certezas dois anos depois.

O Palácio do Planalto encontrou vilões domésticos com CPF conhecido e ganhou, de Trump, um presente de luxo. Se a indignação contra o tarifaço mobilizar a base lulista e reconquistar o eleitor médio, a narrativa entrará para o panteão das grandes estratégias de comunicação. Se fracassar, será lembrada como rótulo vistoso que evaporou antes do brinde. Prognóstico? Ainda é cedo para isso. Na política, a realidade insiste em desmentir quem insiste em prever o placar. •

Publicado na edição n° 1371 de CartaCapital, em 23 de julho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Do 99×1 ao tarifaço’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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