Gustavo Freire Barbosa

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Advogado, mestre em direito constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Coautor de “Por que ler Marx hoje? Reflexões sobre trabalho e revolução”.

Opinião

Dizer que ‘Lula não é santo’ é passar pano para abusos do Lavajatismo

‘Acusar’ uma pessoa de não ser santa é um beco sem saída, uma vez que ninguém, por ser de carne e osso, pode ser algo que não seja humano

Foto: Ricardo Stuckert
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Um dos trunfos de Nicolau Maquiavel (1469-1527) foi ter rompido com a visão teológica medieval que dizia que o poder dos governantes era uma dádiva divina. O filósofo florentino viveu na transição da Idade Média para a Idade Moderna, contribuindo para o refluxo das ideologias do medievo ao fundar o pensamento e a ciência política da modernidade.

O resgate do pensamento clássico greco-romano e de noções como as de Aristóteles, segundo o qual o homem é um animal político que se realiza na participação das decisões coletivas, está presente na obra de Maquiavel. Ao deslocar a filosofia política da metafísica religiosa para o campo da ação humana, colocando os seres humanos no centro da política, Maquiavel teve seu pensamento tachado de imoral, antinatural e “maquiavélico” pela Igreja Católica, que conseguiu popularizar o termo como sinônimo de tudo que é ruim.

Em O Príncipe, Maquiavel trata, dentre outros assuntos, da influência da moral na política, ou da aplicação dos parâmetros das relações privadas no campo da esfera pública. Parece evidente que a promessa de um príncipe (governante) perante seus aliados conjunturais tem peso e circunstância diversas das que são feitas no ambiente doméstico e familiar. Maquiavel explica o óbvio: na política é diferente, e para nela sobreviver é preciso estar ciente disso:

“É preciso, portanto, ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar os lobos. Aqueles que agem apenas como o leão, não conhecem a sua arte. Logo, um senhor prudente não pode nem deve guardar sua palavra, quando isso seja prejudicial aos seus interesses e quando desapareceram as causas que o levaram a empenhá-la. Se todos os homens fossem bons, este preceito seria mau; mas, porque são maus e não observariam a sua fé a teu respeito, não há razão para que a cumpras para com eles. Jamais faltaram a um príncipe razões legítimas para justificar a sua quebra da palavra”.

O trabalho de Maquiavel ainda está inconcluso. Tão logo o caldo começou a entornar para Lava Jato, o espírito republicano e as virtudes morais de alguns críticos da operação os levaram a demarcar que, embora fossem contrários à delinquência de Moro e Dallagnol, Lula não seria “santo”.

A filosofia política dá a chave para entender as raízes da necessidade moral de se desvencilhar da política “suja”, fora, portanto, das virtudes do bom cidadão que todo mês presta seu dízimo à Igreja e à sociedade protetora dos animais. Dizer que uma pessoa não é santa, por si só, já é uma tautologia, já que ninguém, exatamente por ser de carne e osso, pode ser santo, seja na vida privada ou na vida pública.

Alguns, porém, se valem da expressão para mascarar o que realmente pensam, algo na linha do “eu sei que Lula roubou, apesar da forma errada com que a Lava Jato foi conduzida”. Quem pensa assim está errado também (ainda que as mensagens da Vaza Jato, como bem qualificou o ministro Gilmar Mendes, sejam o maior escândalo da história do judiciário brasileiro).

Em “A arte de ter razão”, Schopenhauer explica como a elevação do debate para o plano da abstração, das afirmações vagas e imprecisas, torna mais fácil a vida do debatedor que quer vencê-lo sem ter razão. No caso em questão, não é que não haja provas de que Lula cometeu os malfeitos que lhe são imputados pela turma de Moro e Dallagnol; há, pelo contrário, provas categóricas de sua inocência, reconhecida inclusive pelo próprio ex-juiz Moro ao menos em duas ocasiões do processo: quando afirmou estar condenando Lula pelo cometimento de “ato de ofício indeterminado” e quando decidiu que “este juízo jamais afirmou, na sentença ou em lugar algum, que os valores obtidos pela Construtora OAS nos contratos com a Petrobras foram usados para pagamento da vantagem indevida para o ex-Presidente”. Ora, mas se é exatamente disto que Lula está sendo acusado no processo do tríplex?

“Lula não é santo” é o recibo da tentativa de fazer política sem polêmica, sem enfrentamento, abraçando de antemão a rota moralista e limpinha que serve de carvão para a fornalha da criminalização da própria política. Esse caminho sem pedras, que abre mão de bater de frente com certos sensos comuns, impõe que se parta de pressupostos infantis que, direta ou indiretamente, se alimentam do jargão de que “todo político é corrupto”, colocando os adeptos deste moralismo de boteco na procura por alguém que, como um arcanjo que desce dos céus, esteja acima da profanação dos embates mundanos e das indesviáveis contradições da vida pública (as quais, obviamente, não são sinônimo de corrupção).

Assim, categorias da moral judaico-cristã como “traição”, “decepção”, “culpa” e afins costumam estar no vocabulário dos que, alheios a uma perspectiva materialista dos fenômenos sociais, permanecem presos ao olhar medieval, metafísico e idealista combatido por Maquiavel, um olhar indiferente às inúmeras experiências históricas recentes nas quais o falso discurso do “combate à corrupção” foi instrumentalizado em nome de propósitos nada republicanos.

No início do século, Lenin tentou ensinar aos esquerdistas que contradição não é participar do parlamento burguês e ocupar instituições da democracia liberal; contradição é abrir mão da luta nesses espaços, deixando uma avenida aberta para a hegemonia burguesa. Dizer que “Lula não é santo” é mostrar que, no final das contas, você pode até ter largado o lavajatismo, mas o lavajatismo não largou você.

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