

Opinião
Dissonância cognitiva
De verde e amarelo, “patriotas” pedem uma intervenção dos EUA para “salvar o Brasil” da “ditadura do Judiciário”. Alguém avise que o dress code apropriado seria em vermelho, branco e azul


Seria cômico, não fosse trágico: os adeptos do ex-presidente que celebrava com fogos de artifício o golpe de 1964 e se declarava admirador de Carlos Alberto Brilhante Ustra – torturador de, entre outras vítimas, Dilma Rousseff – agora esperneiam contra a suposta “ditadura judicial” encabeçada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal. O magistrado ousou determinar a prisão domiciliar de Jair Bolsonaro, após o réu, por tentativa de novo golpe de Estado, violar sistematicamente as medidas cautelares que lhe foram impostas.
Em patéticas passeatas pelas ruas das principais capitais brasileiras, os “patriotas” uniformizados de verde e amarelo imploravam ao presidente dos EUA, Donald Trump, que ampliasse as sanções contra o Brasil, e os mais exaltados não escondiam o desejo por uma intervenção militar propriamente dita. Tudo para deter a tal “ditadura” de Moraes. Por “ditadura”, entenda-se qualquer medida que impeça a concretização dos sonhos golpistas do capitão derrotado nas urnas em 2022 e de seus seguidores – os “malucos”, como o próprio Bolsonaro os definiu ao depor no STF, em junho passado.
Pobre democracia brasileira, a depender das tropas norte-americanas para se manter de pé. Em 1964, o golpe que derrubou o governo progressista de João Goulart – com a cooperação informal dos EUA – foi justificado pelo “combate ao comunismo”. Iniciava-se, assim, um período de 21 anos de prisões arbitrárias, torturas, assassinatos e desaparecimentos de dissidentes políticos. Ao menos, à época, a quartelada não foi cinicamente atribuída à defesa da democracia. A “ameaça comunista” parecia um argumento mais convincente – e os patriotas de então não tardaram a organizar, sob a proteção da ditadura, os temidos “Comandos de Caça aos Comunistas”. Até hoje, quem luta por inclusão em um dos países mais desiguais do mundo ainda é tachado de comunista pela direita mais empedernida.
Se essa turma estivesse minimamente interessada em saber o que é uma ditadura (e os impactos daquela caçada aos “comunistas”), poderia consultar o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, da qual tive a honra de participar. Destinado a apurar os crimes do regime militar, o grupo foi criado em 2011 pela então presidenta Dilma Rousseff – ela própria uma vítima da ditadura. Os trabalhos incomodaram setores da direita, que constantemente nos questionavam: “E o outro lado, vocês não vão investigar?” Cansei de ouvir essa pergunta nas ruas. De nada adiantava argumentar que o “outro lado” já havia sido punido durante o período autoritário. Aqueles que sobreviveram às prisões e torturas por lutar contra a ditadura deveriam prestar contas de quê? E os familiares dos desaparecidos políticos, que nem sequer tiveram o direito de sepultar seus mortos?
Esses indivíduos que chamam Moraes de ditador não sabem o que é uma ditadura porque nunca quiseram saber. Quanto a Dilma, não tenho dúvida de que o impeachment injusto que sofreu, com votos dos “patriotas” do Congresso, deve-se ao mal-estar que ela provocou em partes da sociedade brasileira, por ter mexido naquele vespeiro e revelado, aos que ainda não sabiam, o que aconteceu nos anos de chumbo, entre 1964 e 1985.
Quando lhes convém, os “patriotas” chamam de “ditador” qualquer autoridade que estabeleça limites às suas movimentações conspiratórias. Agora Moraes volta a ser apontado como inimigo público por proibir acampamentos de revoltosos na Praça dos Três Poderes e em frente aos quartéis. Ora, como o magistrado poderia tolerá-los depois do 8 de Janeiro?
Parece-me que esses indivíduos padecem de uma forma grave de dissonância cognitiva. Por que vestir as cores da bandeira nacional para pedir que uma potência estrangeira intervenha no País? Não seria mais coerente sair às ruas com as cores da bandeira dos EUA? Como uma invasão estrangeira poderia “salvar o Brasil”? Espero que a sociedade brasileira repudie com vigor os absurdos apelos desses extremistas. Do contrário, será sinal de que o povo emburreceu de vez, e talvez de forma incurável. •
Publicado na edição n° 1375 de CartaCapital, em 20 de agosto de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Dissonância cognitiva’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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