Opinião

Discurso ambientalista? Recepção a Rei Charles na França é um espetáculo de velharias não-sustentáveis

Apesar dos milhares de mortos e desabrigados no Norte da África, o presidente da França recebeu o rei da Inglaterra da forma mais faustosa possível

A princesa Camilla, o rei Charles III, o presidente Emmanuel Macron e a primeira-dama Brigitte Macron. Foto: Ludovic Marin/AFP
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“Oscar Niemeyer fala pouco, mas eu sei tudo o que ele quer dizer” – Vinicius de Moraes

São muitos os indicadores do subdesenvolvimento. A criminalização de questões morais, como o aborto, o consumo de drogas e temas afins estão entre os tristes marcos do atraso social.

Outros traços característicos, que também guardam relação com aqueles, dizem respeito à desligitimação dos cidadãos e cidadãs.

Nas sociedades ibéricas, a cultura da autoridade parece ser traço indelével.

Sofremos mutação quando ascendemos em carreiras ou quando estamos por trás de um balcão de atendimento ao público.

Nosso autoritarismo, então, aflora – da gestualidade às palavras e às exigências descabidas.

Essa forma de violência está tão ancorada em nossa cultura que o próprio Estado incorporou algumas dessas características.

Um exemplo: o atestado de residência.

Não basta que a pessoa demonstre ser ela mesma por meio de um documento e declare onde reside.

É necessário que ela dependa de uma empresa, pública ou privada, para atestar que ela reside aqui ou acolá, para o poder público.

De nada vale sua palavra, sua própria declaração!

Pior ainda para os que habitam em favelas. Por não contarem com contas regulares que atestem a residência, ficam incapacitados até de retirar um livro em biblioteca pública ou privada, pois não têm como apresentar o “comprovante” de residência.

Ou seja, o próprio Estado – nos âmbitos municipal, estadual e federal – termina por induzir à exclusão dos cidadãos e cidadãs que mais necessitam de acesso aos serviços públicos. Pior, induzem ao “jeitinho”, pois as vias legais se mostram, muitas vezes, de impossível cumprimento.

Lutemos para que acabe mais essa exigência absurda, surreal e discriminatória.

Que o governo “popular-democrático-o Brasil voltou” dê um fim a esse vínculo negativo do presente com um passado não apenas meirinho, mas também de cultura cartorial e ditatorial.

Em Brasil – concluir a refundação ou prolongar a dependência (editora Vozes), Leonardo Boff nota: “Cada um vive pelo outro com o outro para o outro, e todos formam a imensa rede de solidariedade cósmica. Essa realidade é tão forte, que o universo não conhece qualquer ser excluído, não conhece lixo; tudo recicla, tudo transforma e tudo incorpora…Alguém é mais adaptado e forte porque tem mais capacidade de relações, e assim de contar com a cooperação dos outros”.

Mas que enorme dificuldade temos os humanos de sentir empatia!

Até porque muitas vezes a solidariedade com os mais fracos nos coloca em oposição com o nosso grupo originário, seja a classe social, a nacionalidade, o gênero ou a raça.

Acontecimento recente demonstra isso: apesar dos milhares de mortos e desabrigados no Norte da África, tanto pelo terremoto no Marrocos quanto pelas enchentes na Líbia, além dos repetidos naufrágios de imigrantes no Mediterrâneo, tentando fugir do empobrecimento gerado pela concupisciência dos países do Norte, o presidente da França recebeu o rei da Inglaterra da forma mais faustosa possível.

Embora em seus discursos ambos tenham ressaltado a emergência climática que o planeta vive (cuja culpa recai em 90% sobre as nações ditas desenvolvidas), a recepção em Paris foi um espetáculo de velharias não-sustentáveis: da esquadrilha da fumaça binacional (um show aéreo de um binacionalismo piegas e aquecedor do meio ambiente) ao jantar no Palácio de Versalhes, a alguns quilômetros do centro da capital, com todo o gasto de combustível que as comitivas e convidados (centenas) requeriram.

Ainda pior, ambos são chefes de Estado de países com assento no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, que para se refestelarem na galeria dos espelhos do palácio de Luís XIV – símbolo máximo do absolutismo e da negação da própria democracia – trocaram a tribuna da ONU por um festejo mórbido, no momento em que milhares de vidas são perdidas pela incúria direta deles, em desastres socioambientais de que o Brasil também padece, principalmente no Rio Grande do Sul.

Se alguém ainda nutria alguma esperança quanto à capacidade do Velho Continente de se regenerar, é de se imaginar que o jantar – cafona e desprovido de empatia, para lideres que se querem mundiais – tenha sepultado aquele augúrio.

Dulcis in fundo, 51% da população francesa declarou-se favorável ao insólito regabofe, adequadamente (há que se reconhecer) no palácio de Maria Antonieta…

A única nota “louvável” do episódio foi, involuntariamente, protagonizada por ambas as primeiras-esposas, que coincidentemente trajaram vestidos de noite do mesmo pano, de cor azul-petróleo, permitindo que a hipocrisia ambientalista dos maridos fosse, ao menos assim, de certa forma denunciada.

Para dona Marizete, couturière aqui do meu bairro, tudo não passou mesmo foi de brincadeira póstuma da Lady Di…

Fica, ainda, a indagação: como pôde um país que mudou a História mundial, com a Revolução Francesa, a Comuna de Paris e Maio de 1968, ter descido tão baixo?

Como pôde a Inglaterra, também pátria da democracia, que nos deu Thomas Morus, John Milton e Willian Shakespeare ter-se petrificado no tempo, ao abrigo de qualquer empatia?

Em Virtudes para um outro mundo possível (editora Vozes), Leonardo Boff reflete a propósito: “Se não houver reconstrução das relações para que sejam mais justas, igualitárias e includentes, não será possível a convivência pacífica. Esta paz exige reparações históricas e políticas compensatórias dos estragos que a dominação fez sobre as vítimas, especialmente quando estas foram por séculos escravizadas e transformadas em ‘peças’ colocadas a preço no mercado. Os países coloniais e outrora escravagistas não despertaram ainda para esta consciência, sequer manifestaram vontade de pedir desculpas pelos crimes contra a humanidade que cometeram durante séculos”.

Mais do que nunca o tema da hegemonia cultural se coloca, aqui como na outrora pátria da cultura, a França, que ademais sedia a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, a Unesco.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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