Jamil Chade

Jornalista, correspondente internacional, escritor e integrante do conselho do Instituto Vladimir Herzog

Opinião

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Diário de um detento

A prisão de Sarkozy, que narrou em livro as agruras na breve temporada atrás das grades, transformou-se em arma eleitoral para líderes da extrema-direita

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Ninguém está acima da lei. A máxima é um mantra de qualquer democracia que se preze. Mas um livro que chega às livrarias da Europa neste Natal confirma o sentimento de indignação da classe dirigente quando um de seus líderes é tratado como um cidadão qualquer. Em Diário de Um Prisioneiro, o ex-presidente Nicolas Sarkozy relata em 216 páginas seu martírio… de apenas 20 dias no cárcere. Trata-se do primeiro chefe de Estado francês a terminar numa prisão desde Philippe Pétain­, general que colaborou com a invasão nazista. Condenado a cinco anos de prisão por financiamento ilegal de campanha com recursos do ex-ditador líbio Maummar Kaddafi, Sarkozy foi libertado até o julgamento de seus recursos.

A editora escolhida para publicar o relato foi a Fayard, ligada ao empresário de extrema-direita Vincent Bolloré. Ao longo de diversos capítulos, Sarkozy parece não ter encontrado tempo para explicar que seus privilégios no cárcere foram negociados detalhadamente, inclusive com a participação do atual presidente, Emmanuel Macron.

O prisioneiro 320535 compara o local onde ficou detido a um “hotel barato”. Acostumado por décadas ao poder e ao luxo, Sarkozy conta, por exemplo, como “imediatamente se arrependeu” de ter aberto uma janela em sua cela ao ouvir um barulho de fora. O motivo era o protesto de outro prisioneiro que batia com uma colher nas grades. “Essa barulheira durou vários minutos. Para mim, pareceu interminável. A atmosfera era ameaçadora. Bem-vindo ao inferno!”, escreveu. O ex-presidente ainda se queixou de um detento que passava parte do tempo cantando O Rei Leão.

Sarkozy relata como “nunca havia sentido um colchão tão duro, nem mesmo durante o serviço militar”. Em sua primeira noite, ele conseguiu dormir até as 7 da manhã. Mas não deixava de lembrar que seus “futuros vizinhos seriam, dependendo do caso, terroristas islâmicos, estupradores, assassinos ou traficantes de drogas. Uma perspectiva deliciosa!”

O ex-presidente francês ainda traz detalhes de sua rotina. “Acordar cedo. Arrumar a cama imediatamente. Lavar, fazer a barba, vestir-se adequadamente. Nada de pijama, nada de negligência”, insistiu. Queixou-se ainda dos horários de alimentação. O almoço era entregue às 11h30 da manhã. “Eu realmente não tinha apetite. Acho que não perdi muita coisa ao recusar a refeição oferecida em pequenas bandejas de plástico, que, sem querer ofender quem as preparou, não eram muito apetitosas”, disse. Em outro trecho, ele diz que o cheiro das bandejas de comida o deixava “enjoado”.

O chuveiro privativo também é alvo de queixas: “A pior parte era que esse fio d’água parava muito de repente, como um cronômetro. Você tinha que ficar procurando o botão e apertando o tempo todo”. Sobre as saídas da cela, descreveu as caminhadas no pátio como “surreais”. “Poucas palavras eram trocadas. Cada homem permanecia absorto em seus próprios pensamentos, em sua própria história. A dor tem o poder de silenciar as pessoas.” Seu ego não o abandonou: Sarkozy fez questão que registrar que todos os funcionários da prisão o chamavam de “presidente”.

O livro não é mero desabafo, mas parte de uma estratégia de comunicação para reposicionar Sarkozy politicamente a partir de uma narrativa de erro judicial e vingança. Uma espécie de Conde de Monte Cristo, personagem de Alexandre Dumas e livro que o próprio ex-presidente levou para a prisão. O protagonista da obra ficou 14 anos numa prisão deteriorada e, ao sair após o reconhecimento do erro da Justiça, tramou sua revanche. Já Sarkozy tinha cela privativa, com banheiro e até uma pequena cozinha.

O relato também é um aceno à extrema-direita. Em um capítulo, no qual critica diversos políticos, ele cita o telefonema da ultradireitista Marine Le Pen, que o havia defendido, e diz ter sido uma das “melhores surpresas” desde a condenação. Para Le Pen, a narrativa é prato cheio para intensificar ataques ao Judiciário. A prisão e condenação de ­Sarkozy, portanto, são ativos políticos para a eleição de 2027. Hoje, ele pode negociar esse capital político.

O ex-presidente também levou para o cárcere uma biografia de Jesus Cristo escrita por Jean-Christian Petitfils. O relato não é de redenção, mas de sacrifício, resiliência e invencibilidade. No final, Sarkozy escreve: “Recomecei minha vida”. Na imprensa francesa, as críticas mais irônicas apontaram com alívio o fato de o livro ter sido abreviado por conta da libertação do famoso detento. Mas se trata, acima de tudo, de uma estratégia política desenhada em detalhes em mais uma manobra para transformar uma condenação de um político por crimes em um trampolim populista. •

Publicado na edição n° 1393 de CartaCapital, em 24 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Diário de um detento’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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