Luiz Gonzaga Belluzzo

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Economista e professor, consultor editorial de CartaCapital.

Opinião

Diálogos da Lava Jato e conspiração de Villas Bôas escancaram o poder das corporações

‘Quando os sentimentos dos agentes do Estado se sobrepõem ao dever, a degradação do poder público chega ao derradeiro estágio’

O general Eduardo Villas Bôas ao lado do presidente Jair Bolsonaro. Foto: Isac Nóbrega/PR
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A turma de cima e a de baixo foram fundamentais na eleição de Bolsonaro. Os de cima seguem firmes no poder, os de baixo acabaram excluídos da festa agora que seus serviços não interessam mais

Nas primeiras andanças de 2021, os brasileiros foram atropelados pela revelação de novos mexericos da turma da Lava Jato. À torrente de vulgaridades e impropriedades da galera do Judiciário juntou-se o depoimento do general Eduardo Villas Bôas. O militar admitiu ao professor Celso de Castro, no livro General Villas Bôas: Conversa com o comandante, ter urdido uma conspiração em 2018 para manter a prisão do ex-presidente Lula.

O general arregimentou o Comando do Exército para tecer a trama: “Sentimos que a coisa poderia fugir ao nosso controle se eu não me expressasse. Recebidas as sugestões, elaboramos o texto final, o que nos tomou todo o expediente, até por volta das 20 horas”.

A falta de compostura dos procuradores e juízes da Lava Jato e a conspiração do general Villas Bôas denunciam muito mais que um episódio de mau comportamento eventual que ultrapassa os limites da legalidade.

Os diálogos de Deltan Dallagnol com seus parças revelam um estágio avançado­ de deterioração do Sistema Judiciário brasileiro. Fascinados pelas cintilações midiáticas e capturados pela instantaneidade estúpida das redes sociais, os agentes do Estado descuidaram da devoção à lei.

A entrevista de Villas Bôas escancara as insuficiências e persistências na formação dos militares brasileiros, ainda enredados na mentalidade intervencionista de uma instituição de Estado que se considera acima de seus deveres constitucionais. Aqui se juntam as estripulias do passado às ignorâncias do presente para prometer escuridão no futuro.

Em seu depoimento, Villas Bôas não deixou barato. Inventou que, no momento da internação de Tancredo Neves, Ulysses Guimarães teria sugerido a realização de novas eleições. Mentira. O destino me reservou o privilégio de assessorar o “Senhor Diretas” ao longo de 20 anos. A maior preocupação de Ulysses era a preservação e o avanço da democracia. Assim, posso atestar a veracidade da matéria do jornalista Elio Gaspari na Folha de S.Paulo de domingo 14 de fevereiro. Aí vai o trecho esclarecedor: “Sarney chegou ao hospital às 21h30. Nas suas palavras: “Lá encontro Ulysses. Tenho os olhos marejados. Rasga-me a alma o sofrimento de Tancredo. Ulysses me desperta ríspido: ‘Sarney, não é hora de sentimentalismos. Nossa luta não pode morrer na praia. Temos de tomar decisões. Você assume amanhã, como manda a Constituição, na interinidade do Tancredo’. ‘Não, Ulysses, assume você. Só assumo com Tancredo.’ ‘Você não pode acrescentar problemas aos que estamos vivendo. É a democracia que temos de salvar’”.

A MISÉRIA INSTITUCIONAL CONTAMINA AS INSTÂNCIAS DECISIVAS DO PODER ESTATAL

O depoimento de Villas Bôas coaduna-se com as compras de picanha, bacalhau e uísque 12 anos realizadas para proveito do alto oficialato. Esses agentes do Estado partilham a putrefação cultural e intelectual que hoje contamina as camadas dirigentes da sociedade brasileira. É duro, mas necessário reconhecer que essas figuras que se pretendem públicas foram embaladas nas precariedades do sistema de valores individualistas e utilitaristas forjado ao longo das últimas décadas.

O individualismo de resultados invadiu todas as esferas da vida social. Do vendaval desagregador não escaparam nem as instituições ditas republicanas. A regra da separação e equilíbrio harmônico dos poderes é avassalada pela autonomização dos estamentos burocráticos, civis e militares, que se apresentam uns diante dos outros como poderes autônomos e rivais empenhados em transformar suas legítimas prerrogativas em privilégios, usurpando a soberania do povo a quem devem a legitimidade de suas ações. Essa miséria institucional contamina as instâncias decisivas do poder estatal.

Pior que o pior: comportam-se, diante do cidadão, como forças estranhas e hostis, sempre na busca de usufruir os poderes que lhes são atribuídos como se fossem reverências concedidas às excelências de suas virtudes. Sim, atribuídos é a palavra. As burocracias judiciárias e militares entregam-se, no entanto, com os olhos revirados ao brilhareco de 15 minutos de fama. As recentes exibições de narcisismo de autoridades na mídia e nas redes sociais são um exemplo impecável de como os deveres republicanos se dissolvem diante dos esgares incontroláveis da subserviência aos valores do mundo das celebridades, coadjuvada pelo corporativismo mais escancarado.

Os processos sociais e econômicos que assolam o mundo contemporâneo são cruéis em suas contradições: adulam o sucesso individual e, no mesmo movimento, exercem o controle dos cidadãos no propósito de aniquilar os resíduos de sua capacidade crítica.

Na era do ciberespaço, o domínio dos corações e das mentes é exercido com os métodos desenvolvidos nos laboratórios midiático-repetitivos encarregados de remover as sobras de razão que os indivíduos imaginam preservar. A estupidez socializada circula nos espaços ocupados por youtubers, influencers et caterva. Os icebergs que despontam nesse mar de desarranjos sociais e econômicos assumem as feições de grupos políticos fascistoides, como é o caso dos invasores do Capitólio nos Estados Unidos ou dos milicianos, fardados ou não, que apoiam Jair Bolsonaro.

Na parte submersa desses icebergs jaz a rejeição ao outro, seja ele quem for, o que configura o individualismo frustrado e antissocial, cuja afirmação se concretiza na exibição agressiva de armamentos ou na prática dos “cancelamentos” sempre prestes a se concretizar no assassinato dos discordantes. No mesmo diapasão toca o realejo da apropriação do Estado para a cominação de finalidades e proveitos familiares, o que envolve a arregimentação das forças de segurança para as fileiras das milícias. O submundo das rachadinhas assume o controle da nação.

Quando os sentimentos e as pertinências particularistas dos agentes do Estado se sobrepõem ao dever funcional, a degradação do poder público chega ao seu derradeiro estágio. Os bacanas da Justiça pretendem-se “livres, excelentes e diferentes”, mas são massa de manobra das engrenagens midiáticas, empenhadas em aprisionar as arrogâncias das excelências nas masmorras da mesmice.

Adaptados, conformados, e até mesmo confortados e felizes, são incapazes de compreender que sua individualidade é uma maçaroca sufocada nas aluviões­ de ignorâncias, vagalhões coletivos que promovem o aniquilamento pessoal. Na sociedade das diferenças que igualam, os diferentes não sentem o que pensam, nem pensam o que sentem.

A banalidade do mal transmuta-se no mal da banalidade.

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