Opinião
Diálogo com um banqueiro central
Chegamos ao ponto em que estudos do FMI indicam que o Brasil adota a mais severa política monetária do mundo
 
         
        A sugestão no título é uma figura ficcional, usada apenas para a construção do nosso argumento. Mas já revela uma das características da autoridade monetária: ela não dialoga com a opinião popular, tampouco com a crítica. Comunica suas decisões em atas, relatórios, boletins e estatísticas. Até recebe prêmios dados por seus pares internacionais, reconhecendo a transparência, a precisão e a diligência na sua comunicação.
Com certeza, estamos aqui elaborando sobre um mito — o mito do banqueiro central em sua torre de marfim, zelando pela estabilidade monetária e financeira do País e sem cometer erros. Nessa imagem de especialistas que modelam a vida econômica, orientados por uma razão onipotente e infalível, repousa um curioso fatalismo que o aprisiona, que é a razão do Mercado.
As políticas de metas de inflação trouxeram uma novidade nesse ambiente das autoridades monetárias: a chamada discricionariedade constrangida. O ser mitológico da modernidade está obrigado a seguir regras. Seu objetivo não é mais controlar os agregados monetários, e sim, coordenar as expectativas na formação dos preços e controlar a própria inflação — e com um único instrumento: a taxa de juros.
O banqueiro central se vê livre do peso da discricionariedade. Agora pode fazer escolhas, mas restrito por um mandato legal e público, que estabelece as regras de sua atuação. Deve perseguir uma meta de inflação, em determinado período, manipulando as taxas de juros. Pronto: um objetivo e um instrumento. Simples.
Mas qual meta deve ser perseguida? Qual o valor da taxa de juros real a ser praticada para empurrar a inflação para a meta? Alguns teóricos sugerem que a meta deve ser próxima à média dos parceiros comerciais. A média da inflação mundial está em torno de 3%. Desde a criação do regime de metas no Brasil, há uma obsessão da autoridade monetária em buscar essa meta, com a exceção ocorrida durante os governos Lula I e II.
Armínio Fraga, estimulado pelo FMI a adotar o regime de metas no Brasil, apontou gradualmente para essa meta, até chegar a 3,5% em 2002. Não conseguiu. A economia brasileira teima em ser vulnerável a choques externos. O mundo havia acabado de sofrer um ataque terrorista massivo ao coração do capitalismo mundial — os Estados Unidos — e, mais especificamente, a Wall Street, onde ficavam as Torres Gêmeas, e ao Pentágono, o solerte guardião da hegemonia estadunidense.
Esse evento desencadeou uma incerteza profunda nos mercados internacionais de ativos físicos e financeiros, seguida por uma guerra no Iraque e outra no Afeganistão, ao custo de milhões de vidas e trilhões de dólares. Aos problemas internos da economia brasileira e às instabilidades nos vizinhos latino-americanos somou-se um conflito brutal e desestabilizador.
O ponto aqui é ressaltar que uma economia sujeita a choques adversos frequentes, como a nossa — sejam financeiros, cambiais, climáticos ou políticos — não deveria perseguir a inflação de países com muito maior produtividade e capacidade de absorver choques externos que a nossa.
Esse foi um debate presente durante o primeiro governo Lula, e que pareceu pacificado no segundo governo Lula e no primeiro governo Dilma. O Banco Central no Lula I, presidido por um banqueiro com reputação internacional, mudou a meta para 2003 de 4% a.a., fixada pelo CMN em jun/2002 (antes havia sido fixada em 3,25%, em jun/2001), para uma meta ajustada de 8,5%. A razão óbvia era que a inflação de 2002 corria, no fim do ano, acima de 12%.
Foi uma decisão corajosa e correta, pois os seguidos fracassos em atingir as metas corroíam a credibilidade do regime adotado. O mercado absorveu a ousadia com naturalidade e alívio, pois a situação não se sustentava mais.
Mas houve uma tentativa do Banco Central, em 2005, de voltar à trajetória de perseguição de uma meta de 3%. Após muitos debates, escolheu-se uma meta de 4,5%, que se mostrou sustentável e assim permaneceu até 2018.
Naquele período, a China exportava deflação via produtos manufaturados mais baratos ao mundo todo. O boom das commodities, que acompanhava a vitalidade econômica chinesa, submetia-nos a dois fatores estruturais de redução da inflação: a deflação de produtos chineses e a imensa liquidez internacional que transbordava para o Brasil, sobrevalorizando o real.
Hoje, a situação econômica e política não é a mesma. A crise da Covid-19 deixou um rastro de desorganização das cadeias de custos mundiais, pressionando preços. A estratégia errática de Trump na proteção da indústria dos EUA amplificou o problema e manteve uma instabilidade permanente no horizonte. Nesse cenário conturbado e adverso, o Banco Central recebeu um mandato de buscar uma meta de inflação decrescente.
É um erro estarrecedor — como se não houvesse aprendizado algum da história de implementação do regime de metas no Brasil. O Banco Central repete o discurso de que a política fiscal não ajuda a política monetária, ao mesmo tempo em que mantém uma taxa de juros real escandalosa. Cobra resultados primários melhores, enquanto placidamente contribui com a quase totalidade do aumento do déficit nominal.
O Comitê de Política Monetária age como um soberano perplexo— ofuscado com o próprio poder e indiferente aos efeitos de sua política sobre o desenvolvimento e o futuro do País.
Como responde às críticas? Reiterando uma regra aplicada de forma mecânica e nada criativa. Diz que a taxa de desemprego está em nível de pleno emprego e que o PIB potencial não autoriza juros reais menores. Resgata o NAIRU como argumento, como se esse conceito de uma taxa de desemprego neutra não tivesse sido enterrado já na época de Greenspan, quando a taxa de desemprego nos EUA batia recordes sucessivos de quedas abaixo do famigerado limite da taxa de desemprego não inflacionária.
Há dois equívocos básicos no argumento da nossa autoridade monetária. De fato, a taxa de desemprego está no nível mais baixo da série da PNAD Contínua, iniciada em 2012. Mas uma série de 13 anos, no seu conceito mais restrito, não é suficiente para estabelecer qual seria o nível empírico de pleno emprego, ainda mais em um mercado de trabalho em transformação profunda.
Por outro lado, há de se considerar que a taxa de subutilização da força de trabalho é mais de duas vezes superior à taxa de desocupação: a de desocupação é de 5,8% e a de subutilização, de 14,4%, segundo o IBGE.
Por que o comitê monitora as taxas de desemprego? Não é porque tem um mandato dual — pois infelizmente não tem, o emprego é objetivo secundário. É porque não quer que uma taxa de pleno emprego pressione os salários, os custos e a demanda de bens de consumo.
O detalhe é que não há pleno emprego, pois a oferta de mão de obra não é inelástica à demanda das empresas. E como sabemos disso? Porque há milhões de trabalhadores dispostos a trabalhar jornadas maiores, já que estão sendo obrigados a sobreviver com jornadas parciais e erráticas. É o que indicam as diferentes medidas de subutilização da força de trabalho do IBGE.
A autoridade monetária vai além e tira da caixa de ferramentas outro conceito: o chamado PIB potencial. Este indicaria qual crescimento da economia seria possível, dada a disponibilidade de fatores produtivos. É calculado de diferentes formas: uma delas utiliza uma função de produção da economia como um todo; outra aplica filtros econométricos às séries do PIB, isolando o crescimento de longo prazo.
Esses cálculos têm indicado um crescimento de PIB potencial próximo de 2,5%. Assim, se o crescimento supera esse valor, a autoridade monetária o considera potencialmente inflacionário e insustentável. Sua reação é aumentar a taxa de juros para impedir que a alegada demanda excessiva eleve a inflação acima da buscada — ou impeça sua convergência para a meta quando já é superior à inflação vigente.
Há vários problemas nesse uso do PIB potencial para orientar a política monetária. O primeiro é que as medidas não indicam os limites futuros, mas reproduzem os limites passados. Se o PIB cresceu pouco no passado, crescerá pouco no futuro, pois a política monetária não permitiria nenhum descolamento dessa história pouco estimulante.
O segundo é que a forma de superar o PIB potencial baixo — que está no aumento sustentado dos investimentos produtivos — fica interditada pela reação do Banco Central, que é aumentar os juros reais para impedir um crescimento superior ao potencial. Isso inviabiliza os investimentos e impede que o PIB potencial cresça. Uma armadilha.
Ora, a taxa de investimento no Brasil tem sido muito baixa, justamente por causa das taxas de juros exorbitantes. Temos uma taxa de 17%, quando um crescimento sustentado exigiria taxas de pelo menos 25%.
O banqueiro central que se orienta por essas guias condena o País a um sofrimento que poderia ser evitado, caso interpretasse a economia com uma visão mais ampla, criativa e aderente à realidade. Não é o que vem acontecendo. Chegamos ao ponto em que estudos do FMI indicam que o Brasil adota a mais severa política monetária do mundo.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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