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Desmontar o desmonte

Os entraves ao ensino e à pesquisa criados por Michel Temer e Jair Bolsonaro ainda não foram retirados

Imagem: iStockphoto
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No fim de 2015, o MDB divulgou o documento intitulado Uma Ponte para o Futuro, que deixava claras as diretrizes de um novo governo comandado pelo então vice-presidente Michel Temer. O documento serviu para angariar apoio em setores ultraliberais para a derrubada da presidenta Dilma Rousseff. Aquela “ponte” previa uma redução do Estado e dos direitos sociais e o favorecimento dos interesses privados. As reformas que vieram não foram surpresa. Vejamos três exemplos de ações governamentais compatíveis com o previsto naquele documento nas áreas de educação e de pesquisa científica e tecnológica, adotadas após a posse interina de Temer e que continuam de pé.

Um dos primeiros atos de Temer, em maio de 2016, foi iniciar o desmonte do sistema de fomento da pesquisa científica e tecnológica, rebaixando a posição do CNPq. Em seguida vieram as reduções sistemáticas de orçamento, chegando, em poucos anos, à terça parte do que tinha sido por volta de 2015. A Capes, principal órgão de fomento à formação de pessoal de nível superior, seguiu o mesmo rumo, tendo seu orçamento reduzido na mesma proporção.

O processo foi estendido ao sistema educacional federal como um todo, na forma de redução dos orçamentos das universidades. O ataque continuou durante o período de Jair Bolsonaro e, vale lembrar, tem sido reproduzido em São Paulo, com um projeto de alteração da Constituição estadual que levará a um corte dos recursos destinados à educação pública de 17%.

Um segundo exemplo é o ataque à estrutura do sistema educacional. No fim de 2016, o governo apresentou uma Medida Provisória alterando a lei de diretrizes e bases da educação. Menos de cinco meses depois, em fevereiro de 2017, estava convertida em lei, prazo curtíssimo em comparação à LDB, prevista na Constituição de 1988 e finalizada apenas em 1996. Tal rapidez na tramitação, e ainda durante o período de recesso escolar, sugere que havia coisas a ser escondidas da população e, em especial, dos estudantes. Essa lei, conhecida como Novo Ensino Médio, incluía a permissão a profissionais sem curso superior ou de magistério atuar como professores, a limitação em um máximo de 1,8 mil horas de aula ao longo do ensino médio destinado ao cumprimento do previsto na Base Nacional Comum Curricular, a criação de itinerários formativos, o aumento das possibilidades de ensino a distância, inclusive por meio de terceirização, e apenas as disciplinas de Matemática e Língua Portuguesa como obrigatórias em todos os anos do ensino médio. Quando os aspectos danosos das mudanças se mostraram evidentes, surgiram protestos intensos, em especial por parte dos estudantes, que levaram o atual governo a encaminhar ao Congresso um projeto corrigindo os estragos feitos.

Terá sucesso? Com uma enorme bancada oposicionista e com o fato de que o presidente da Câmara dos Deputados, também oposicionista, indicou como relator o próprio proponente do projeto original, à época ministro da Educação, o caminho para a reversão será muito difícil e dependerá de manifestações públicas massivas. E essas manifestações dependem da mobilização dos estudantes das escolas públicas, os mais prejudicados por esse novo ensino médio, inclusive porque em sua maioria têm como única fonte de aprendizado a escola pública.

Recomposição de receitas, o fim do novo ensino médio, interferências privadas. Há muito a corrigir

Uma terceira grande mudança é no campo institucional, na forma de medidas para facilitar a influência de entidades privadas em instituições públicas, inclusive e especialmente, de educação. A Lei 13.800, proposta por Temer e sancionada por Bolsonaro em 2019, permite, por meio de repasses financeiros, que instituições privadas possam definir atividades a ser desenvolvidas em instituições públicas, sem que isso passe pelas instâncias deliberativas dessas últimas. Alguém que se oponha a tal lei poderia ser questionado com a pergunta “que mal há em empresas ou pessoas físicas doarem dinheiro para instituições de pesquisa ou educacionais?” Nenhum, claro. Mas não é isso que está em jogo, mesmo porque nada impede, nem impedia, doações a qualquer instituição pública de pesquisa ou de ensino. O que está em jogo é a possibilidade de tal transferência de recursos ser feita com destino definido apenas pelas próprias instituições doadoras, sem precisar da aprovação pelas instâncias deliberativas públicas. Mais: como os recursos podem ser transferidos diretamente para indivíduos – estudantes, pesquisadores, docentes e demais trabalhadores –, seu poder de sedução é enorme. Esses gastos são desprezíveis quando comparados com os orçamentos das instituições públicas, mas são capazes de direcionar os investimentos dessas últimas. Não é por acaso que instituições ligadas a grandes empresas, empresários e empresárias tenham aumentado significativamente suas ações nas universidades públicas nos últimos anos.

Originalmente, a Lei 13.800 impedia que as fundações ditas de apoio às universidades públicas e credenciadas no MEC com base em lei de 1994 participassem de tais parcerias. Mas, em junho de 2019, uma alteração passou a permitir que as fundações sejam equiparadas com aquelas instituições, o que provoca uma relação promíscua ainda maior entre as administrações públicas e os interesses privados. A força política dos grupos interessados na lei é muito grande, fato ilustrado pela reforma tributária ora em discussão, que prevê a isenção de impostos sobre doações feitas por dirigentes empresariais às instituições controladas por eles mesmos.

É bastante didático ler o documento que encaminhou a Medida Provisória 851 de 2018, transformada na Lei 13.800. O documento faz enorme confusão entre instituições públicas e privadas no mundo todo, em particular nos EUA. Também cria fantasias sobre os valores dos fundos patrimoniais das grandes universidades públicas, confundidas com os mesmos fundos de instituições privadas. Seja essa confusão fruto da má intenção ou do desconhecimento, revela a euforia dos setores ultraliberais à época, que não tinham receio de encontrar qualquer oposição significativa ao seu projeto e pouco se importavam com a compatibilidade entre o que escreviam e a realidade.

O recente desmonte da educação não se esgota com os exemplos citados. Eles formam apenas um conjunto daqueles mais sedimentados. Como desfazer, ao menos parcialmente, todo esse desmonte da educação e da produção de conhecimento no País? Talvez a resposta esteja com os estudantes, especialmente aqueles das instituições públicas, os maiores prejudicados por todas essas ações. •


Otaviano Helene: Professor sênior do Instituto de Física da USP, ex-presidente do Inep e autor, entre outros, de Um Diagnóstico da Educação Brasileira e de Seu Financiamento.

Publicado na edição n° 1291 de CartaCapital, em 27 de dezembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Desmontar o desmonte’

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