

Opinião
Deslumbrados pelo êxito
Os novos ocupantes do Palácio do Planalto deveriam lembrar: nem as vitórias nem as derrotas são definitivas


No começo do século passado, Freud descreveu situações de homens “arruinados pelo êxito”. Gente que ficara doente justamente quando “um desejo profundamente enraizado e há muito alimentado” atingiu sua realização. Nas últimas semanas, o Brasil tem assistido um outro fenômeno: os “deslumbrados pelo êxito”.
Em 11 de novembro, uma entrevista do comandante do Exército Brasileiro foi reveladora. Depois de dizer durante as eleições que o vencedor nas urnas poderia ter sua legitimidade questionada, o general Eduardo Villas Bôas, que não obstante é uma das vozes mais ponderadas no Alto Comando, foi além.
Na prática, admitiu que seu tuite às vésperas do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula foi “no limite” e era uma mensagem ao STF. Justificou-se dizendo que a situação poderia sair do controle e que militares da reserva estavam extrapolando na ênfase de suas manifestações. Por fim, disse que a relação custo-benefício foi positiva: “Era melhor prevenir do que remediar”.
O item 57 de um decreto federal de 2002 é claro ao dizer que integrantes da ativa das Forças Armadas estão proibidos de realizar manifestações a respeito “de assuntos de natureza político-partidária”. Mesmo após admitir ter infringido essa lei, não houve nenhuma manifestação dos demais poderes e das instituições do País.
Em uma dimensão bastante diferente e mais rebaixada, no fim do mês, um vídeo do MBL sobre a campanha de Bolsonaro viralizou na internet. O filho do empresário Paulo Marinho admite aos seus entrevistadores que enviou milhares de áudios para eleitores imitando a voz de Bolsonaro.
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Chega a relatar um episódio asqueroso, onde enviou uma mensagem a garimpeiros da Serra Pelada: “Estamos aqui agradecendo pelas orações, pela consideração e dizer que conto com vocês aí para o que der e vier. Vocês sabem que terão em mim um defensor implacável de agora em diante, tá ok?”.
E em seguida simula o choro recebido como resposta das pessoas do Norte, agradecendo a Deus pela mensagem recebida. Gabou-se de ter virado uns “50 mil votos” só com esse áudio falso.
O rapaz chegou a cometer o sincericídio de dizer: “Não sei se é crime eleitoral ou não, mas eu estava correndo esse risco”.
Para além da questão da falsidade ideológica e do estelionato, confessa que enganou milhares de brasileiros e explorou seus sentimentos sem qualquer tipo de constrangimento.
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Essas duas situações remontam a uma história vivida pela Venezuela em 2002. Em 12 de abril daquele ano, o empresário Pedro Carmona anuncia um governo de transição após um golpe militar que o fez ser nomeado presidente interino.
Poucas horas depois, o canal RCTV começa seu jornal matinal celebrando a chegada do novo presidente. E inicia-se uma conversa com tom extremamente festivo entre jornalistas e militares, onde chegam até a agradecer aos meios de comunicação pelo novo momento político do país.
Durante o programa, um deles admite que a declaração de um dos generais sobre a decisão foi gravada na casa de um dos diretores do canal de televisão. Há algumas risadas em tom de nervosismo, mas a conversa segue normalmente. Chegam a explicar o plano original do golpe, os entraves que tiveram e as soluções que encontraram para tirar Chávez do poder. Não havia nenhuma preocupação em mostrar de forma explícita a aliança entre os empresários, parte dos militares e os meios de comunicação que havia orquestrado o golpe institucional que durou menos de 24 horas.
É esse o sentimento que podemos ver nos “deslumbrados pelo êxito”. Em meio a uma crise econômica sem precedentes e a fragilidade cada vez maior das instituições, venceram nas urnas. Ganharam, é verdade, e terão legitimidade para governar. Mas não para trucidar e agir como donos do País, imunes a qualquer tipo de contrapeso institucional e social. A arrogância é um pecado que a história não perdoa. Nem o povo. Aos “deslumbrados pelo êxito” vale recordar a sábia frase de Pepe Mujica: “Nem as vitórias nem as derrotas são definitivas”.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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