

Opinião
Desigualdade em campo
A derrota do Flamengo para o Al Hilal evidencia o desequilíbrio do futebol no mundo e deixa claro que estávamos diante de uma ilusão midiática


Um assunto esportivo que preencheu os noticiários, as redes sociais e as conversas esta semana foi a desclassificação do Flamengo, na terça-feira 7, na fase semifinal do Mundial de Clubes. O rubro-negro foi derrotado por 3 a 2 pelo Al Hilal, da Arábia Saudita, em Tânger, no Marrocos, e vai disputar o terceiro lugar da competição.
Se a derrota causou tamanho impacto é porque ela deixa claro que estávamos diante de mais uma ilusão midiática construída sobre areia movediça. Concordo que falar depois do leite derramado é fácil. Mas a instabilidade dessa construção e seus pontos vulneráveis já vinham sendo levantados por alguns analistas que correram o risco de ser acusados de não respeitar a força avassaladora de um dos clubes mais populares do Brasil.
Tais comentários, como o de que era preciso, primeiro, passar pela semifinal, eram feitos, quase sempre, da boca para fora, de maneira pálida, sem qualquer força de expressão. O que era apontado com veemência era a espera do confronto contra o Real Madrid – que agora tem o caminho aberto.
Confesso que cheguei a temer, em meio ao clima que se formava, uma derrota humilhante contra o Real. Mas logo me deixei envolver pelo otimismo reinante. A decepção tornou-se, dessa forma, desastrosa. A expectativa da gigantesca torcida rubro-negra foi estimulada de forma interesseira. Devemos reconhecer que, como sociedade, ainda nos falta maturidade para conquistar a desejada independência.
O jornalista José Carlos Mansur, rara voz lúcida, nos mostra em suas análises esportivas, que incluem o “painel da desigualdade”, a situação de desequilíbrio do futebol no mundo. A distância entre os povos, que aumenta cada vez mais, reflete-se na nossa condição atual de periferia. E essa constatação não tem nada a ver com a velha ideia do “complexo de vira-lata”. Ela é um retrato do mundo atual.
Uma demonstração do incômodo que esses desequilíbrios geram é que houve protestos de representantes de outros continentes, como a África, pela preferência dada aos representantes da Europa e da América do Sul.
Estamos, porém, passando por mais um período do que já se chamou de fornecedores de “pé de obra”.
Esse é um dos pontos destacados no balanço, a esta altura exaustivo, a respeito da derrota do Flamengo: a transferência, para times do exterior, das revelações dos nossos clubes e a contratação indiscriminada de veteranos, muitos deles necessários para o equilíbrio na formação de grandes equipes. O Flamengo vem atravessando mal a fase de transição pela qual todos os times passam – isso acontece agora com o próprio Real Madrid e também o Barcelona.
Fala-se muito da saída do Arrascaeta e depois do Everton Ribeiro, dois craques fora do comum que deixaram o Flamengo carente de criatividade. O time está visivelmente desgastado. Além de tudo, passou pela reconhecida trapalhada nas contratações, que deixaram o ambiente perturbado. Um exemplo disso é que o experiente Vidal foi multado, na semana decisiva, ao externar, em duas ocasiões, a insatisfação justificável.
Marinho é outra contratação que não vem rendendo. E a volta do Gerson tampouco rende os frutos esperados. Mas fica claro que o problema não são os jogadores.
Na busca das razões para a derrota citou-se um “erro de planejamento”, que incluiria a troca de treinador, o período de férias e os treinos inoportunos. Longe daqui, a Juventus italiana – um clube habitualmente estável – passa por crise semelhante. E lá vivem gentes das que mais conhecem futebol. Ou seja, o cenário futebolístico reflete uma crise mundial mais ampla, que se dá no bojo do neoliberalismo. Entre nós, neste momento, a confusão é grande. As SAFs (Sociedade Anônima do Futebol) começam a ser contestadas e a tendência é que virem um “queijo suíço”, tantos são os buracos. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1246 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE FEVEREIRO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Desigualdade em campo”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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