

Opinião
Descaso homicida
A ditadura matou 8 mil indígenas sem disparar um tiro. Bastaram as obras de ‘integração’ da Amazônia em nome do ‘progresso’


Os indígenas estão de volta ao noticiário. Desta vez, como vítimas de atividades criminosas do garimpo. Todos viram as fotos de adultos e crianças raquíticos, assolados pela fome, porque a mineração ilegal matou os peixes e envenenou os rios, elementos essenciais para a sua subsistência.
Quando fui convocada pela presidenta Dilma Rousseff a integrar a Comissão Nacional da Verdade, soube que a indicação de meu nome provinha do MST. Por isso escolhi investigar as violações cometidas contra camponeses, a exemplo dos agricultores torturados para revelar o paradeiro dos guerrilheiros do Araguaia – e nada revelaram – ou do grande líder maranhense Manoel da Conceição, que perdeu uma perna na tortura. Foram entrevistas marcantes, mas não é desses personagens que vou tratar aqui.
Acontece que a investigação sobre as graves violações contra grupos indígenas veio nesse mesmo “pacote”, talvez por uma inadvertida leviandade de quem aprovou a lei: indígenas e camponeses só têm em comum o fato de viverem longe das regiões não urbanas do País.
Nesta coluna, quero recuperar um pouco da história dos indígenas na ditadura em razão da extrema atualidade do sofrimento do povo Yanomâmi, assolado, agora, não pela invasão de suas terras a mando dos governos militares – as grandes obras de “integração” da Amazônia –, mas pela destruição de seus meios de subsistência pelo garimpo ilegal.
Segundo a estimativa de pesquisadores do nosso grupo de trabalho na CNV – Inimá Simões e Vincent Carelli, além da valiosa contribuição do Instituto Socioambiental –, ao menos 8 mil indígenas foram mortos na ditadura. “Mas como?”, nos perguntavam. “Os índios lutaram contra os militares”? Não, eles nem sequer sabiam que viviam em um país chamado Brasil, com um governo muito diferente daquele composto por suas lideranças.
Como, então, morriam os índios cujas terras foram invadidas na ditadura? De causas corriqueiras. Morriam de gripe, de sarampo, de catapora, de varíola. Vivendo isolados, eles não dispunham das mesmas defesas imunológicas que os brancos. Nesses casos, doenças banais podem ser fatais. Os líderes das frentes de aproximação pediam ao governo para enviar remédios e vacinas, mas o descaso com os povos originários era completo
Um descaso semelhante, por sinal, ao manifestado pelo ex-presidente (ufa!) Jair Bolsonaro em relação às 600 mil vítimas da Covid-19. Seu desprezo pelos povos originários lembra uma antiga declaração do ministro do Interior Rangel Reis, em 1976: “Os índios não podem impedir a passagem do progresso. (…) Dentro de dez a 20 anos não haverá mais índios no Brasil”.
Na CNV, entrevistamos um sertanista chamado Antônio Cotrim, que à época da ditadura se demitiu da Funai, um emprego com estabilidade garantida e bem remunerado, para denunciar a negligência do regime à revista Veja. “Não quero ser coveiro de índios”, justificou na ocasião. Acrescento, aqui, o depoimento de Davi Yanomâmi, válido tanto em relação às violações sofridas pelo seu povo hoje quanto no tempo da ditadura:
Eu não sabia que existia governo. Veio chegando de longe até a nossa terra, são pensamentos diferentes de nós. Pensamentos de tirar mercadoria da terra: ouro, diamantes, cassiterita, madeira, pedras preciosas. Matam árvores, destroem a terra mãe, como o povo indígena fala. Ela é que cuida de nós. Ela nasceu, a natureza grande, para a gente usar. Eu não sabia que o governo ia fazer estradas aqui. Autoridade não avisou antes de destruir nosso meio ambiente, de matar nosso povo. Não só os Yanomâmi, o povo do Brasil. A estrada é um caminho de invasores, de garimpo, de agricultores, de pescadores. Estradas que o governo construiu começaram lá em Belém, depois Amapá, Manaus, Boa Vista. Mataram nossos parentes Waimiri-Atroari. É trabalho ilegal. O branco usa palavra ilegal.
A Funai, que era pra nos proteger, não nos ajudou nem avisou dos perigos. Hoje estamos reclamando. Só agora está acontecendo, em 2013, que vocês vieram aqui pedir pra gente contar a história. Quero dizer: eu não quero mais morrer outra vez. O governo local e nacional, deputados, senadores, governadores, todos têm que pensar como o governo vai nos proteger, e não deixar mais destruir matas e rios e fazer sofrer os Yanomâmi e outros parentes, junto com a floresta. O meio ambiente sofre também.
Minha ideia: ando no meu país, o Brasil. Sou filho da Amazônia, conto para quem não sabe o sofrimento do meu povo. Não queremos que a autoridade deixe estragar outra vez. Se o governo quer estrada na terra Yanomâmi, tem que conversar com nós, junto com o Ibama. O governo Dilma está aprontando para estragar outra vez. Nosso povo não quer. A autoridade tem que respeitar a Constituinte que o governo passado criou. •
Publicado na edição n° 1250 de CartaCapital, em 15 de março de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Descaso homicida’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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